São Paulo, quarta-feira, 01 de setembro de 2004

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MEDICINA

Americanos começam a testar em janeiro imunização contra verme do amarelão, que afeta zona rural no Brasil

Doença de Jeca Tatu ganha primeira vacina

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

A doença que já foi símbolo do atraso e da pobreza no Brasil rural está para ganhar uma vacina. Pesquisadores devem começar a testar em janeiro nos EUA a primeira imunização contra a ancilostomose, infecção causada por vermes que afeta 740 milhões de pessoas nos trópicos. Se passar nos testes em humanos, a vacina será fabricada no Brasil.
A ancilostomose, também conhecida como doença do amarelão, foi tornada célebre por Monteiro Lobato em 1918, como a causadora da indolência do personagem Jeca Tatu. "Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte", escreveu Lobato.
A inércia -e a cor amarelada típica dos pacientes- se deve ao fato de os parasitas causadores da ancilostomose, os vermes Necator americanus e Ancylostoma duodenale, atacarem a mucosa intestinal e causarem perda de sangue e anemia.
"Em algumas áreas do Nordeste de Minas Gerais, de 55% a 87% da população está infectada", disse o imunologista Rodrigo Oliveira, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em Belo Horizonte.
Oliveira é um dos pesquisadores envolvidos na elaboração e no teste da vacina, cujo princípio foi descoberto por uma equipe da Universidade George Washington, nos Estados Unidos.

Fases
Vacinas contra parasitas complexos, como vermes, são uma raridade -só há duas em desenvolvimento no mundo- porque é difícil achar uma molécula pequena o suficiente e característica desses parasitas para induzir resposta no sistema de defesa.
O grupo liderado pelo médico americano Peter Hotez conseguiu isolar proteínas secretadas pelos vermes causadores do amarelão quando estão em fase de larva. É nessa parte do ciclo de vida do parasita que os seres humanos são infectados, por ingestão ou contato com solo contaminado.
Essas proteínas foram capazes de estimular, in vitro, a produção de anticorpos por células humanas. Em animais vivos, elas reduziram a quantidade de vermes no sangue entre 30% e 50%.
A eficiência da imunização é relativamente baixa. Mas, segundo a hondurenha Maria Elena Bottazzi, da George Washington, isso deve bastar para cortar o ciclo da infecção em moradores de áreas rurais -especialmente crianças, que acabam sofrendo problemas de aprendizado devido à anemia.
"Não esperamos ter uma vacina esterilizante", disse a cientista à Folha. "Queremos que os pacientes passem a não desenvolver mais a doença, mesmo se tiverem alguns vermes no sangue."
O tratamento do amarelão hoje é feito com vermífugos, que combatem o parasita, mas são incapazes de prevenir a reinfecção.
O modo mais simples de erradicar a doença -como é regra entre a maioria das moléstias tropicais endêmicas- é criar um mínimo de infra-estrutura de saneamento. E calçar a população. Uma solução biotecnológica para o problema parece, portanto, ser um exagero, ou um desperdício.
"O problema é justamente esse. [A doença] pode ser curada com isso e ninguém faz", diz Oliveira. "A vacina é mais barata."
Apesar de ainda não haver um cálculo final, porque ainda não se sabe qual será a eficácia da imunização em humanos, o médico da Fiocruz (que deverá fabricar comercialmente a vacina, juntamente com o Instituto Butantan, em São Paulo) estima em US$ 0,50 (cerca de R$ 1,50) a dose. "Os vermífugos têm o mesmo custo."
Uma versão-piloto da vacina para testes em humanos já está pronta nos EUA. Ela será aplicada em cerca de 30 pacientes naquele país para que sua segurança seja avaliada. As chamadas fases dois e três do teste clínico, com duração de sete anos, serão feitas no Brasil.


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