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+ ciência
Monstros
promissores
Pode uma
mosca com patas no lugar das antenas anunciar uma revolução científica?
Um livro
recém-lançado
no Brasil
diz que sim
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Aqui vai a uma pequena receita para
fazer sucesso com
um livro de biologia
evolutiva para o
grande público: primeiro, use
no título alguma frase do último capítulo de "A Origem das
Espécies". Depois, apresente a
tese que você defende, seja ela
qual for, como uma revolução,
um divisor de águas na história
do pensamento humano -ou,
no mínimo, uma mudança radical na ciência da vida.
O americano Sean Carroll
pode ser perdoado por ter feito
as duas coisas. Seu livro "Infinitas Formas de Grande Beleza" faz uma alusão direta ao último parágrafo da obra-prima
de Darwin (muito provavelmente o texto mais citado da
história das ciências biológicas). E apresenta o que o autor
chama, sem modéstia nenhuma, de "Revolução nš 3" da
evolução: a evo-devo.
O nome parece o de uma
banda pop qualquer dos anos
1980. E foi justamente nessa
década que a evo-devo (acrônimo espirituoso para "biologia
evolutiva do desenvolvimento") começou a aparecer nas
paradas de sucesso. Mas seus
fundamentos foram lançados
mais de um século antes disso,
por gente como o embriologista alemão Ernst Haeckel e pelo
próprio Charles Darwin.
Darwin era um grande defensor do chamado princípio
da recapitulação, proposto por
Haeckel. Segundo essa idéia, o
desenvolvimento de um animal, de um embrião de uma só
célula até um organismo adulto
(a ontogenia), reencena toda a
história evolutiva do grupo ao
qual esse animal pertence (a filogenia). É por isso que embriões de galinha, peixe, cachorro e homem são todos
muito parecidos até uma certa
fase do desenvolvimento.
Mas a teoria evolutiva tenta
explicar exatamente como essas modificações que aparecem
durante a embriogênese acontecem entre as diferentes espécies. Por que uma zebra é diferente de uma baleia? Por que
jibóias têm vestígios de patas?
E como se produzem estruturas complexas como nadadeiras e patas durante a evolução?
As observações de Darwin e
seus contemporâneos sobre o
desenvolvimento, no entanto,
permaneceram mais de um século no ostracismo. Até recentemente, o processo através do
qual um embrião gera um indivíduo completo era uma espécie de caixa-preta no pensamento biológico. Quando o
darwinismo (a primeira revolução) foi unido à genética (a
segunda revolução), na chamada Moderna Síntese dos anos
1940, a embriologia ficou fora.
Os embriões só seriam devolvidos à evolução mais tarde,
com o desenvolvimento da biologia molecular (que permitiu
desvendar o DNA dos organismos) e com uma ajuda insuspeita: a dos monstros.
Com os pés na cabeça
O avanço no conhecimento
dos genes permitiu aos cientistas estudar fenômenos estranhos que vinham sendo descritos por embriologistas desde o
século 19: mutações que fazem
ovelhas nascerem com um olho
só e moscas desenvolverem patas na cabeça, ou que aumentam o número de segmentos no
corpo dos crustáceos.
O curioso era que essas aberrações pareciam surgir de alterações pequenas em genes únicos -um desses genes, batizado "eye-less", faz moscas nascerem sem olho quando é alterado. E o bom-senso evolucionista tradicional dizia que toda
a espetacular diversidade da vida (as "infinitas formas de
grande beleza", nos dizeres de
Darwin) se produzia não aos
saltos mas pelo acúmulo lento e
gradual de alterações discretas
ao longo do tempo.
O que a evo-devo mostrou foi
que realmente não há conflito
algum entre essas visões. Estudando as mutações que alteram
o curso normal do desenvolvimento dos embriões, os embriologistas descobriram que
os planos corporais das criaturas, por exemplo, são ditados
por um conjunto limitado de
"genes-mestres", batizados de
genes homeobox -ou Hox, para os íntimos. São essas seqüências de DNA que dão instruções do tipo: "coloque uma
pata aqui, um olho ali".
Os genes Hox, assim como a
maioria dos outros genes, variam muito pouco ao longo da
evolução. Isso porque eles desempenham funções importantes demais para que sofram
grandes mudanças -cujo resultado seriam monstros inviáveis. Todos os animais têm um
conjunto de genes Hox e de outros genes-mestres que coordenam o desenvolvimento embrionário e que se mostraram
espantosamente conservados
desde o Período Cambriano, há
540 milhões de anos.
Interruptores
O leitor que prestou atenção
nas aulas de biologia protestará: afinal, um gene é um pedaço
de DNA que traz a receita para a
produção de uma proteína -tipo de molécula que faz tudo no
organismo. Como, então, o
mesmo gene é capaz de produzir brânquias em camarões e
asas em libélulas?
Aqui entra a segunda grande
descoberta da evo-devo, que
Carroll defende em seu livro
como a verdadeira fonte da inovação na natureza: o que vale é
a maneira como os genes são
"ligados" ou "desligados" ao
longo do desenvolvimento embrionário. E quem faz esse papel são seqüências de DNA que
não entram na produção de
proteínas (ou seja, não são "codificantes"). Esses "interruptores" genéticos não afetam a
proteína produzida por um gene mas determinam quando e
se essa proteína é produzida, e
em que etapa do desenvolvimento. Mudanças nos interruptores, argumentam os paladinos da evo-devo, produziram
e produzem a imensa diversidade de formas vista na natureza ao mesmo tempo em que
"poupam" os genes.
Não só isso: elas habilitam o
mesmo gene a ser "cooptado" a
desempenhar funções diferentes num mesmo animal. É de
Carroll e seu grupo a descoberta de que um gene Hox chamado distal-less, que produz extremidades dos membros em
animais, orquestra também a
produção de manchas em asas
de borboleta -graças à mudança em um desses interruptores,
ou regiões reguladoras.
"Infinitas Formas" é um livro
poderoso e repleto de evidências -ainda que pontuais- de
uma fonte de variação que antes estava fora do alcance dos
biólogos. Se a evo-devo se mostrará com o tempo a revolução
defendida pelo autor é algo a
ser visto. Mas ela certamente
ajuda a completar o quadro
darwinista, e Carroll a defende
com tanta clareza e paixão que
seus exageros são desculpados.
LIVRO - "Infinitas Formas de Grande
Beleza"
Sean B. Carroll; Jorge Zahar Editor,
303 págs., R$ 49
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