São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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Monstros promissores

Pode uma mosca com patas no lugar das antenas anunciar uma revolução científica? Um livro recém-lançado no Brasil diz que sim

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Aqui vai a uma pequena receita para fazer sucesso com um livro de biologia evolutiva para o grande público: primeiro, use no título alguma frase do último capítulo de "A Origem das Espécies". Depois, apresente a tese que você defende, seja ela qual for, como uma revolução, um divisor de águas na história do pensamento humano -ou, no mínimo, uma mudança radical na ciência da vida.
O americano Sean Carroll pode ser perdoado por ter feito as duas coisas. Seu livro "Infinitas Formas de Grande Beleza" faz uma alusão direta ao último parágrafo da obra-prima de Darwin (muito provavelmente o texto mais citado da história das ciências biológicas). E apresenta o que o autor chama, sem modéstia nenhuma, de "Revolução nš 3" da evolução: a evo-devo.
O nome parece o de uma banda pop qualquer dos anos 1980. E foi justamente nessa década que a evo-devo (acrônimo espirituoso para "biologia evolutiva do desenvolvimento") começou a aparecer nas paradas de sucesso. Mas seus fundamentos foram lançados mais de um século antes disso, por gente como o embriologista alemão Ernst Haeckel e pelo próprio Charles Darwin.
Darwin era um grande defensor do chamado princípio da recapitulação, proposto por Haeckel. Segundo essa idéia, o desenvolvimento de um animal, de um embrião de uma só célula até um organismo adulto (a ontogenia), reencena toda a história evolutiva do grupo ao qual esse animal pertence (a filogenia). É por isso que embriões de galinha, peixe, cachorro e homem são todos muito parecidos até uma certa fase do desenvolvimento.
Mas a teoria evolutiva tenta explicar exatamente como essas modificações que aparecem durante a embriogênese acontecem entre as diferentes espécies. Por que uma zebra é diferente de uma baleia? Por que jibóias têm vestígios de patas? E como se produzem estruturas complexas como nadadeiras e patas durante a evolução?
As observações de Darwin e seus contemporâneos sobre o desenvolvimento, no entanto, permaneceram mais de um século no ostracismo. Até recentemente, o processo através do qual um embrião gera um indivíduo completo era uma espécie de caixa-preta no pensamento biológico. Quando o darwinismo (a primeira revolução) foi unido à genética (a segunda revolução), na chamada Moderna Síntese dos anos 1940, a embriologia ficou fora.
Os embriões só seriam devolvidos à evolução mais tarde, com o desenvolvimento da biologia molecular (que permitiu desvendar o DNA dos organismos) e com uma ajuda insuspeita: a dos monstros.

Com os pés na cabeça
O avanço no conhecimento dos genes permitiu aos cientistas estudar fenômenos estranhos que vinham sendo descritos por embriologistas desde o século 19: mutações que fazem ovelhas nascerem com um olho só e moscas desenvolverem patas na cabeça, ou que aumentam o número de segmentos no corpo dos crustáceos.
O curioso era que essas aberrações pareciam surgir de alterações pequenas em genes únicos -um desses genes, batizado "eye-less", faz moscas nascerem sem olho quando é alterado. E o bom-senso evolucionista tradicional dizia que toda a espetacular diversidade da vida (as "infinitas formas de grande beleza", nos dizeres de Darwin) se produzia não aos saltos mas pelo acúmulo lento e gradual de alterações discretas ao longo do tempo.
O que a evo-devo mostrou foi que realmente não há conflito algum entre essas visões. Estudando as mutações que alteram o curso normal do desenvolvimento dos embriões, os embriologistas descobriram que os planos corporais das criaturas, por exemplo, são ditados por um conjunto limitado de "genes-mestres", batizados de genes homeobox -ou Hox, para os íntimos. São essas seqüências de DNA que dão instruções do tipo: "coloque uma pata aqui, um olho ali".
Os genes Hox, assim como a maioria dos outros genes, variam muito pouco ao longo da evolução. Isso porque eles desempenham funções importantes demais para que sofram grandes mudanças -cujo resultado seriam monstros inviáveis. Todos os animais têm um conjunto de genes Hox e de outros genes-mestres que coordenam o desenvolvimento embrionário e que se mostraram espantosamente conservados desde o Período Cambriano, há 540 milhões de anos.

Interruptores
O leitor que prestou atenção nas aulas de biologia protestará: afinal, um gene é um pedaço de DNA que traz a receita para a produção de uma proteína -tipo de molécula que faz tudo no organismo. Como, então, o mesmo gene é capaz de produzir brânquias em camarões e asas em libélulas?
Aqui entra a segunda grande descoberta da evo-devo, que Carroll defende em seu livro como a verdadeira fonte da inovação na natureza: o que vale é a maneira como os genes são "ligados" ou "desligados" ao longo do desenvolvimento embrionário. E quem faz esse papel são seqüências de DNA que não entram na produção de proteínas (ou seja, não são "codificantes"). Esses "interruptores" genéticos não afetam a proteína produzida por um gene mas determinam quando e se essa proteína é produzida, e em que etapa do desenvolvimento. Mudanças nos interruptores, argumentam os paladinos da evo-devo, produziram e produzem a imensa diversidade de formas vista na natureza ao mesmo tempo em que "poupam" os genes.
Não só isso: elas habilitam o mesmo gene a ser "cooptado" a desempenhar funções diferentes num mesmo animal. É de Carroll e seu grupo a descoberta de que um gene Hox chamado distal-less, que produz extremidades dos membros em animais, orquestra também a produção de manchas em asas de borboleta -graças à mudança em um desses interruptores, ou regiões reguladoras.
"Infinitas Formas" é um livro poderoso e repleto de evidências -ainda que pontuais- de uma fonte de variação que antes estava fora do alcance dos biólogos. Se a evo-devo se mostrará com o tempo a revolução defendida pelo autor é algo a ser visto. Mas ela certamente ajuda a completar o quadro darwinista, e Carroll a defende com tanta clareza e paixão que seus exageros são desculpados.


LIVRO - "Infinitas Formas de Grande Beleza"
Sean B. Carroll; Jorge Zahar Editor, 303 págs., R$ 49


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