São Paulo, domingo, 01 de novembro de 2009

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+Marcelo Leite

Saudades da mata


Pobre de quem não viu um tiê-sangue traçar um risco de fogo no ar


Na memória, estava sempre garoando quando o Fusca 1959 estacionava na barraca do Gordo, perto do alto da serra do Mar e de Paraibuna (SP). O enjoo, naquela altura da longa viagem -seis horas, em geral- até Ubatuba, já tinha produzido estragos. Mais alguns quilômetros e a vista do mar curava tudo.
Da janela do carro apertado, a única distração era ver as árvores passarem. O desfile úmido e fresco desencadeava uma espécie de transe, interrompido aqui e ali pela explosão lilás e branca de um manacá-da-serra. Uma ou outra cobra atravessava o asfalto estreito, sem acostamento.
Ninguém no veículo conhecia ainda o nome "mata atlântica", só a dita cuja em pessoa. Já em Ubatuba o contato era bem mais íntimo, sem vidros nem desfile, cara a cara -tronco a tronco, por assim dizer. Longas caminhadas por trilhas e pinguelas para alcançar praias mais distantes. Como Flamengo, Flamenguinho e Sete Fontes, muito além do Saco da Ribeira.
Pobre de quem nunca caminhou pela mata atlântica nem teve o privilégio de ver um tiê-sangue traçar um risco de fogo no ar, com suas penas. Poderá ter conhecido as sequoias da Califórnia, a Floresta Negra da Alemanha ou até a floresta amazônica, mas seu conceito de floresta sairá empobrecido. Nenhuma floresta deveria morrer, ao menos não de morte matada.
A mata atlântica, contudo, continua correndo risco de vida (alguém precisa preservar esta locução sob ameaça de extinção, sob pressão do predador "risco de morte"). Resta menos de 8% de seu 1,3 milhão de quilômetros quadrados (km2) originais, cerca de um sétimo do território brasileiro atual.
Entre 2005 e 2008, mais mil km2 caíram, uma área equivalente a dois terços do município de São Paulo. O bioma é monitorado há décadas pela organização não-governamental SOS Mata Atlântica. O resultado pode ser visualizado neste mapa: http://mapas.sosma.org.br. Cuidado para não se deprimir muito. O mapa mostra certas coisas curiosas. Uma das maiores concentrações de remanescentes de mata atlântica está em São Paulo. Justamente o Estado mais desenvolvido, mais populoso e mais associado com sua destruição, para ceder lugar ao café e depois à cana-de-açúcar.
São 25.359 km2, ou 15% da cobertura original. Só perde para Minas Gerais, que tem 26.372 km2, mas muito mais dispersos pela imensa Zona da Mata mineira. A fragmentação excessiva da floresta representa um problema sério para que se mantenha a biodiversidade. As populações de plantas e animais ficam ilhadas e perdem contato com as vizinhas, quebrando o fluxo de genes que garante sua capacidade de se adaptar.
Em SP há grandes maciços de mata atlântica na serra do Mar (entre a Baixada Santista e a fronteira com o Rio de Janeiro), no litoral Sul (serra da Jureia) e no Vale do Ribeira. Uma combinação de fatores, como terrenos íngremes demais para a agricultura, permitiu que escapassem da fronteira de destruição que varreu o Estado de leste a oeste durante o século 20.
Sobrou também uma faixa estreita na fronteira entre o Sul de Minas e o Vale do Paraíba, cobrindo as escarpas da serra da Mantiqueira. Uma mata mesclada de araucárias, linda de morrer. Também pode ser vista noutras serras que riscam a divisa estadual entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, perto do litoral.
No Paraná há manchas gigantescas, uma contígua ao Vale do Ribeira, perto de Paranaguá, outra nos 1.852 km2 do Parque Nacional do Iguaçu. Ainda dá para matar as saudades -se a mata não morrer antes.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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