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Ciência em Dia
Clones anunciados
Marcelo Leite
editor de Ciência
Assentada a maior parte da poeira erguida pela seita dos raelianos com o
"anúncio" do suposto nascimento do
primeiro ser humano clonado em 26 de
dezembro, a possibilidade de que tudo
não tenha passado de um engodo torna-se cada vez maior. Afinal, a criança nunca foi apresentada, nem a análise de seu
DNA, nem a identidade dos pais, nem o
país onde teria vindo à luz. Nada. Zero.
Do ponto de vista dos usos e costumes
científicos, é como se Eva nunca tivesse
nascido. E quem alimentava a esperança
ou o temor de que um mínimo de bom
senso visitasse Claude "Raël" Vorilhon
com a mesma frequência de seus amigos
ETs viu a chance desmoronar com a entrevista peculiar que "Sua Santidade"
concedeu a Salvador Nogueira, publicada na Folha em 20 de janeiro.
Já o rescaldo da aventura é mais difícil
de ser avaliado. De um lado, não paira
muita dúvida de que a anunciação pela
"bispa" raeliana Brigitte Boisselier teve
pelo menos o mérito de suscitar o debate. Claro que não se trata de uma justificativa, e também é evidente que boa parte das discussões teve um caráter frívolo
-do gênero que se pergunta se seria o
caso de clonar Gisele Bündchen ou Daniela Cicarelli, as moças da hora.
Por outro lado, esse debate necessário
também já conta com alguns pesos-pesados, como Jürgen Habermas e Francis
Fukuyama (abordados em colunas passadas), no exterior, e Renato Janine Ribeiro, no Brasil. Foi o filósofo brasileiro
quem chamou minha atenção para uma
das poucas argumentações de bom nível
em favor, ainda que tentativamente, da
clonagem reprodutiva.
O argumento apareceu num texto que
o geneticista Michel Revel, presidente do
comitê de bioética da Academia de Ciências de Israel, publicou no jornal francês
"Le Monde" de 4 de janeiro. Revel classifica a iniciativa dos raelianos sem meias
palavras -se for mesmo verdadeira-
como um experimento com seres humanos que viola as regras surgidas a partir
dos processos de Nuremberg e da condenação universal das práticas biomédicas
nazistas durante a Segunda Guerra. Deixa, no entanto, uma porta aberta para a
clonagem reprodutiva.
"Um verdadeiro debate sobre a clonagem deveria se preocupar com suas aplicações médicas, como a possibilidade de
procriar para um casal estéril que não
queira utilizar um banco anônimo de esperma ou uma doação de óvulo por terceiros", defende Revel. "Ou a possibilidade de assegurar a não-transmissão do
gene causador de uma doença hereditária num casal de alto risco."
Revel está preocupado com a instrumentalização da revolta causada pelos
raelianos em favor dos radicais conservadores que querem proibir toda e qualquer clonagem, mesmo a terapêutica. Ele
acha que a pesquisa pode inclusive elucidar os mecanismos que tornam a clonagem reprodutiva tão arriscada. Diminuindo ou eliminando o risco do procedimento, sua aplicação se tornaria uma
decisão dos médicos, obedecidos os ditames éticos da profissão.
O geneticista diz que a fertilização "in
vitro" (FIV) suscitou reações semelhantes, nos anos 1970, mas terminou aceita e
hoje ajuda milhares de casais (ainda que
o número seja ínfimo, diante da maioria
que pode procriar pelo método tradicional). Pode ser, mas antes será preciso
convencer muita gente -inclusive este
colunista- de que a clonagem reprodutiva não cruza fronteira alguma que a
FIV já não tenha cruzado.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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