São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006 |
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Ciência em Dia O sorriso de Gagarin
MARCELO LEITE
O gesto só não foi a senha para uma constrangedora avalanche de ufanismo espacial porque ela já havia começado antes. Muito antes, por exemplo, da desanimada fala em rede nacional de TV do ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, no mesmo dia. A imprensa já estava coalhada de reportagens e documentários sobre Pontes, o novo herói dos brasileiros (rivalizado nos últimos dias por um simples caseiro, Francenildo). Nesta altura, já se sabe quase tudo sobre o aviador nascido em Bauru há 43 anos. É bom filho, pai e irmão. Desenha bem e toca violão. Até compôs uma "Suíte Sideral", que serviria de trilha sonora para a aventura brasileira no espaço. Arrastado pelo entusiasmo com a odisséia tupiniquim, um repórter de TV arrojado afirmou que até as estrelas compreenderiam a emoção especial do astronauta brasileiro. E por aí se foi. O ponto alto da mistificação foi comparar Pontes com Alberto Santos Dumont e Iuri Gagarin. Pontes merece todo o respeito, mais por sua coragem e determinação do que por suas palavras, mas não chega aos pés de nenhum dos dois. O primeiro aviador brasileiro voou nas máquinas que ele mesmo projetou, um século atrás, com toques de genialidade (mais apreciáveis num Demoiselle do que num 14-Bis). Gagarin, por seu lado, fez mais do que ser o primeiro a voar algumas dezenas de metros. Sentou-se no topo de um míssil e viu o próprio planeta de fora, coisa que nunca ninguém havia feito. Foi e disse: "A Terra é azul". Nunca mais precisou dizer nem fazer nada. Bastava sorrir. Pontes também tem muitas razões para rir, mas não são as mesmas de Gagarin. Compará-lo ao herói soviético com base somente nisso -o sorriso- é prova rematada de falta de assunto, ou de argumentos. A cobertura da imprensa para o pequeno vôo histórico do brasileiro, contudo, não teve só ufanismo. Aqui e ali se fizeram ouvir críticas ao caráter perdulário da empreitada, à indigência da maior parte dos experimentos que leva a bordo, aos objetivos propagandísticos da viagem. Coisa rara, na cobertura de feitos científicos. No dia mesmo do lançamento, em pleno Jornal Nacional da Rede Globo, que tanto investiu no novo herói, a surpresa: uma entrevista com Ennio Candotti, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), espinafrando a iniciativa. Denunciou que a "carona paga" torrava boa parte do orçamento do programa espacial e disse que isso equivalia a comer a sobremesa antes da refeição. Gagarin, se não estiver se revirando no túmulo, pode até estar sorrindo. Talvez dissesse: "A Terra é azul, mas o espaço, hoje, é verde-e-amarelo". Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br Texto Anterior: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: A Terra em fúria Próximo Texto: Biodiversidade segue as flutuações do clima, diz estudo Índice |
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