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+ Marcelo Leite
Óvulos masculinos
Se vingar, nova técnica não será a primeira nem a última quimera da biotecnologia
Roger Abdelmassih, quem diria,
acabou na "Nature" (não na revista britânica "Nature" propriamente dita, mas no boletim "news@nature.com", mantido pelo
mais célebre periódico científico do
mundo). O médico paulista, dono de
uma das clínicas mais requisitadas de
reprodução humana da cidade, investe há alguns anos na contratação de
pesquisadores estrangeiros. Agora,
colheu resultado de monta: seus laboratórios produziram óvulos e espermatozóides maduros in vitro (fora do
corpo) a partir de células-tronco embrionárias (CTEs) de camundongo.
A façanha foi realizada por Irina e
Alexandre Kerkis, russos radicados há
mais de dez anos no Brasil. O casal
imigrou a convite de Darcy Ribeiro e
foi parar em Campos de Goytacazes,
de onde passou para a USP. Depois
Irina fez concurso e foi contratada pelo Instituto Butantã, enquanto Alexandre foi fisgado por Abdelmassih.
Em agosto do ano passado, quando
terminavam de montar o laboratório
na clínica e ainda faziam segredo sobre o trabalho com diferenciação de
gametas (células reprodutivas) a partir de células-tronco, Alexandre afirmou que eles tiveram a sorte de poder
contar ao mesmo tempo com dinheiro
privado e do governo para fazer suas
pesquisas.
Outros investigadores, aqui, vêem
seus projetos prejudicados a toda hora
pela irregularidade no fluxo de verbas.
Segundo os russos, isso tira muito da
condição de competir -publicar- na
cena internacional: "Parece que todo
mundo vive 300 anos no Brasil", dizia
Alexandre.
O estudo dos Kerkis não foi publicado, ainda. O que saiu no boletim da
"Nature" de 23 de junho foi uma notícia, escrita por Jo Marchant. Era um
relato da apresentação que Irina fizera dois dias antes, em Praga, na reunião anual da Sociedade Européia de
Reprodução Humana e Embriologia.
O feito da dupla foi noticiado também
pelos jornais "O Estado de S.Paulo" e
"O Globo".
Como relata Marchant, não é a primeira vez que se obtêm gametas de
CTEs de camundongo. Outros grupos
já tinham conseguido fabricar óvulos
e espermatozóides -mas separadamente. Juntos, na mesma placa, era
inédito. E os Kerkis ainda produziram
os gametas masculinos mais maduros,
no exterior dos corpos embrióides
(esferas formadas pela multiplicação
das CTEs), enquanto os óvulos apareceram no seu interior. A substância-chave no preparo das células embrionárias foi o ácido retinóico.
Aplicada em seres humanos, a técnica poderia ajudar a resolver casos de
infertilidade (interesse maior de Abdelmassih). Antes, porém, seria desejável repetir a proeza tecnobiológica
com células-tronco adultas. Caso contrário, primeiro teriam de produzir
um embrião clonado de um homem
infértil, por exemplo. Cultivando-o
até a fase de blastocisto, quando tem
uma centena de células, o embrião seria então destruído para obter as
CTEs, que por sua vez seriam diferenciadas em espermatozóides com ajuda
do ácido retinóico.
Tal desenvolvimento, porém, pode
encontrar-se ainda a anos ou décadas
de distância. Segundo os cientistas, na
reportagem de Marchant, tempo suficiente para debater na esfera pública
possibilidades inquietantes abertas
pela técnica, como a produção de óvulos a partir de células masculinas. Ou
seja, óvulos -gametas por definição
femininos- de um homem.
Se um dia vierem a ser produzidos,
de células-tronco humanas adultas ou
embrionárias, óvulos masculinos não
serão a primeira nem a última quimera da biotecnologia. A vida ela mesma
já não é nem será mais a mesma.
Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp,
autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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