São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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+ Marcelo Leite

Óvulos masculinos

Se vingar, nova técnica não será a primeira nem a última quimera da biotecnologia

Roger Abdelmassih, quem diria, acabou na "Nature" (não na revista britânica "Nature" propriamente dita, mas no boletim "news@nature.com", mantido pelo mais célebre periódico científico do mundo). O médico paulista, dono de uma das clínicas mais requisitadas de reprodução humana da cidade, investe há alguns anos na contratação de pesquisadores estrangeiros. Agora, colheu resultado de monta: seus laboratórios produziram óvulos e espermatozóides maduros in vitro (fora do corpo) a partir de células-tronco embrionárias (CTEs) de camundongo.
A façanha foi realizada por Irina e Alexandre Kerkis, russos radicados há mais de dez anos no Brasil. O casal imigrou a convite de Darcy Ribeiro e foi parar em Campos de Goytacazes, de onde passou para a USP. Depois Irina fez concurso e foi contratada pelo Instituto Butantã, enquanto Alexandre foi fisgado por Abdelmassih.
Em agosto do ano passado, quando terminavam de montar o laboratório na clínica e ainda faziam segredo sobre o trabalho com diferenciação de gametas (células reprodutivas) a partir de células-tronco, Alexandre afirmou que eles tiveram a sorte de poder contar ao mesmo tempo com dinheiro privado e do governo para fazer suas pesquisas.
Outros investigadores, aqui, vêem seus projetos prejudicados a toda hora pela irregularidade no fluxo de verbas. Segundo os russos, isso tira muito da condição de competir -publicar- na cena internacional: "Parece que todo mundo vive 300 anos no Brasil", dizia Alexandre.
O estudo dos Kerkis não foi publicado, ainda. O que saiu no boletim da "Nature" de 23 de junho foi uma notícia, escrita por Jo Marchant. Era um relato da apresentação que Irina fizera dois dias antes, em Praga, na reunião anual da Sociedade Européia de Reprodução Humana e Embriologia. O feito da dupla foi noticiado também pelos jornais "O Estado de S.Paulo" e "O Globo".
Como relata Marchant, não é a primeira vez que se obtêm gametas de CTEs de camundongo. Outros grupos já tinham conseguido fabricar óvulos e espermatozóides -mas separadamente. Juntos, na mesma placa, era inédito. E os Kerkis ainda produziram os gametas masculinos mais maduros, no exterior dos corpos embrióides (esferas formadas pela multiplicação das CTEs), enquanto os óvulos apareceram no seu interior. A substância-chave no preparo das células embrionárias foi o ácido retinóico.
Aplicada em seres humanos, a técnica poderia ajudar a resolver casos de infertilidade (interesse maior de Abdelmassih). Antes, porém, seria desejável repetir a proeza tecnobiológica com células-tronco adultas. Caso contrário, primeiro teriam de produzir um embrião clonado de um homem infértil, por exemplo. Cultivando-o até a fase de blastocisto, quando tem uma centena de células, o embrião seria então destruído para obter as CTEs, que por sua vez seriam diferenciadas em espermatozóides com ajuda do ácido retinóico.
Tal desenvolvimento, porém, pode encontrar-se ainda a anos ou décadas de distância. Segundo os cientistas, na reportagem de Marchant, tempo suficiente para debater na esfera pública possibilidades inquietantes abertas pela técnica, como a produção de óvulos a partir de células masculinas. Ou seja, óvulos -gametas por definição femininos- de um homem.
Se um dia vierem a ser produzidos, de células-tronco humanas adultas ou embrionárias, óvulos masculinos não serão a primeira nem a última quimera da biotecnologia. A vida ela mesma já não é nem será mais a mesma.


Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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