São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

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+Marcelo Leite

O besouro e o tesouro


Não há nada de especial no Lamprocyphus augustus

Poucas ideias causam tanta confusão quanto a ideia fixa com a biopirataria. É a versão biotecnológica do "berço esplêndido": o Brasil possuiria vastas riquezas naturais que permanecem inexploradas ou deixam de beneficiar o país por apropriação indébita por estrangeiros.
Nessa óptica conspiratória, os brasileiros ou são vítimas ou são cúmplices da roubalheira incúria ou entreguismo. A tese é popular em alguns setores militares e outros xenófobos, unindo conservadores e esquerdistas.
Não é bem o caso da senadora Marina Silva, cuja defesa do tesouro da biodiversidade amazônica parece difícil de compatibilizar com formas primitivas de nacionalismo. Ela jamais subscreveria uma nova campanha "O petróleo (do pré-sal) é nosso", por exemplo, pois sabe que o futuro pertence às energias renováveis.
Segunda-feira que passou, no entanto, sua coluna nesta Folha trazia o título "O besouro é nosso". Referia-se ao inseto Lamprocyphus augustus, popularizado um ano atrás como "o besouro fotônico". Foi notícia por toda parte, a começar pela antenada revista americana "Wired".
Pesquisadores da Universidade de Utah (Estados Unidos) haviam descoberto que a disposição das escamas na carapaça verde iridescente do bicho conteria a chave para confeccionar os chips do futuro, que utilizarão a luz (fótons) em lugar de eletricidade.
Computadores muito mais rápidos e eficientes, graças a um reles habitante do solo amazônico.
Marina Silva mencionou no texto que o besouro havia chegado a Utah por meio de um comerciante belga e de uma transação pela internet. Registrou a suposta perda de US$ 2,4 bilhões anuais pelo Brasil com biopirataria. E concluiu: "Não duvido que, apenas com a tecnologia decorrente das pesquisas com este único besouro, os americanos produzam mais riqueza do que todo o valor anual da exploração ilegal de madeira, da soja e do gado na Amazônia".
Antes que o besouro fotônico entre para o anedotário da biopirataria, ao lado da "patente do cupuaçu" e do falso mapa de livro didático americano delimitando a Amazônia como "território internacional", é prudente deixar claro que o tal chip não existe, ainda. Não se produziu nem ganhou um centavo com ele.
Consultada sobre a possibilidade de seu texto realimentar a lenda, a senadora explica que o besouro constitui apenas um exemplo. Foi usado, justificou, para enfatizar a necessidade de "investir fortemente em pesquisas e na adequada regulamentação daquilo que nossos biomas contêm".
Confrontado com a frase de Marina Silva reproduzida dois parágrafos atrás, Michael H. Bartl, autor do estudo de Utah, viu nela algum exagero. "No entanto", afirma, "os cristais fotônicos estruturados em forma de diamante que descobrimos
no besouro L.
augustus são de fato muito promissores para as propriedades ópticas e eletro-ópticas de nova geração." Agora, um pouco de água fria na fervura: "Nesse meio tempo também descobrimos estruturas similares em vários outros besouros, que nos permitirão não só manipular a luz verde (L. augustus), mas também a azul e a vermelha (cobrindo basicamente toda a faixa da luz visível)".
Em outras palavras: não há nada de especial no Lamprocyphus augustus. Existem dezenas, centenas de milhares de espécies de besouros pelo mundo. Mesmo que os azuis e os vermelhos também saiam daqui, isso não nos torna mais ricos nem mais pobres do que sempre fomos.


MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ) E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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