São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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+ ciência

Duas rodadas de duplicação no genoma dos vertebrados podem explicar sucesso evolutivo

Genoma 4x4

Divulgação
Um cromossomo, estrutura enovelada que guarda o material genético; número deles teria quadruplicado no primeiro vertebrado


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Até os sujeitos com menos paciência para as minúcias da biologia devem concordar: não dá muito trabalho entender como, grosso modo, o DNA do homem e o de seus parentes mais próximos na árvore da vida, os vertebrados, está organizado. Os cromossomos (novelos moleculares que guardam o material genético) se perfilam lado a lado, em pares, um vindo do pai e o outro da mãe da criatura. Fácil, não é? Dá para passar para o próximo slide, por favor?
Essa moleza, ao menos do ponto de vista da história do genoma, pode estar com os dias contados. Uma dupla de pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley e da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, descobriu indícios convincentes de que as tais duplas de cromossomos viraram, na verdade, um octeto turbulento no início da evolução dos vertebrados. Feito as bandas de rock que estão na ativa desde os anos 1960, eles foram perdendo "integrantes" até voltarem a parecer uma mera dupla. Mas os efeitos desse genoma quadruplicado teriam sido vitais para impulsionar o sucesso evolutivo de mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes.
A pesquisa está na edição deste mês da revista científica de acesso gratuito "PLoS Biology" (www.plosbiology.org) e pode significar a palavra final num velho debate. A idéia de que o DNA de todos os vertebrados é o resultado de duas rodadas (2R, para os íntimos) de uma duplicação do genoma inteiro (ou WGD, na sigla inglesa) foi proposta originalmente pelo biólogo japonês naturalizado americano Susumu Ohno, no já longínquo ano de 1970.

Interesse antigo
"Eu tenho um interesse antigo nesse assunto, mas foi só graças à recente disponibilidade das seqüências completas de vários genomas que se tornou possível resolver a questão", conta Jeffrey Boore, um dos autores do estudo. A tese de Ohno sobre as duplicações -não só as do genoma inteiro, mas também as de genes individuais- diz que elas funcionam como motor da mudança evolutiva por causa do que se poderia chamar de "efeito libertador".
Explica-se: seres vivos são mecanismos muito bem azeitados. Como diz o zoólogo britânico e papa evolucionista Richard Dawkins, existem muito mais maneiras de estar morto do que de estar vivo. Com isso, Dawkins quer dizer, por exemplo, que se um gene sofre uma alteração que corresponda a uma mudança na proteína cujo código ele contém, há muito mais chances de o produto final ser uma porcaria e acabar fazendo mal para o organismo do que o contrário. Assim, haveria uma tendência grande a eliminar genes alterados, dificultando o surgimento de novidades evolutivas.

Sobressalentes
A duplicação vira esse jogo porque o gene original continua lá, ganhando apenas a companhia de uma cópia. A maioria das versões duplicadas acabaria perecendo do mesmo jeito, mas aumentam a chances de que algumas das cópias, modificadas ligeiramente, assumam uma função que complemente ou melhore a do gene original. Sabe-se que várias proteínas na verdade são "montadas" a partir de diversos genes que, originalmente, parecem ter sido um só. É o caso da hemoglobina, a proteína que transporta oxigênio e gás carbônico no sangue dos seres humanos. E há sempre a possibilidade de que o pedaço de DNA duplicado ganhe função totalmente diferente -e benéfica, para variar.
Uma das primeiras pistas de que um processo desse tipo poderia ter acontecido no ancestral comum dos vertebrados, e por duas vezes, veio da observação dos chamados genes Hox, ou homeóticos. Eles estão presentes em quase todos os animais e parecem regular principalmente a estrutura corporal: número de segmentos (como nas minhocas e insetos), de apêndices e até de olhos. O interessante é que parece haver uma razão de 4 para 1 entre o número de genes Hox em vertebrados e invertebrados. Ou seja, se um inseto tem um gene do tipo, humanos e parentada têm quatro correspondentes.
Para azar dos defensores da teoria, porém, a comparação entre o genoma humano e o da mosca-das-frutas Drosophila revelou que só 5% dos genes comuns entre os dois seguiam essa regra. Por isso, Boore e seu colega Paramvir Dehal resolveram radicalizar: puseram, lado a lado, os genomas de três vertebrados -homem, camundongo e o peixe Takifugu, um tipo de baiacu- e o da Cionia intestinalis, um invertebrado do grupo dos urocordados. Isso quer dizer que ela está entre os primos mais próximos dos vertebrados, o que ajuda a medir se a quadruplicação aconteceu antes ou depois que as linhagens se separaram.
Nessa primeira tentativa, eles descobriram que 34,5% dos genes derivados do ancestral comum das várias espécies haviam sofrido duplicações antes da separação entre peixes e vertebrados terrestres. O problema é que só 10,8% passaram por duas rodadas do processo. Mesmo levando em conta o fato de que uma batelada dos genes copiados iria sumir mesmo por ser inútil ou prejudicial, parecia difícil defender a tese.
A dupla, porém, passou a escarafunchar em detalhe como o DNA duplicado se distribuía pelo genoma humano, que é o mais conhecido por enquanto. "Olhamos os genes sobre os quais podemos dizer que surgiram antes da separação entre peixes e tetrápodes [vertebrados terrestres]", explica Boore. E as coisas se encaixaram: esses genes se distribuíam pelos cromossomos num padrão quadruplicado (digamos, uma versão ligeiramente diferente de cada gene em quatro cromossomos). Mais: costumavam aparecer ladeados por grandes trechos de DNA -o que sugere que eles não se quadruplicaram gene por gene, mas cromossomo por cromossomo.
"Dá para imaginar que isso aconteceria, por exemplo, logo depois da fecundação. O zigoto [óvulo recém-fecundado] duplicaria seus cromossomos, mas não se dividiria em duas células, e a partir daí as divisões aconteceriam normalmente", diz Boore. O processo é conhecido em árvores como o choupo e numa espécie de sapo africano, conta o pesquisador americano.

Mais complexidade
Para o biólogo brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago, o trabalho, no geral, é "interessante e convincente".
"O que eu achei que está faltando nesse artigo é a discussão sobre que tipo de gene foi preservado com duas, três ou quatro cópias em relação ao ancestral comum. A resposta é importante, porque um número grande desses genes mantidos codifica fatores de transcrição, proteínas que servem como chaves-mestras de outros genes [coordenando se eles são ativados ou desativados, por exemplo]", diz Nóbrega. "Esses são os genes mais críticos do genoma, aqueles em que as modificações têm o potencial de gerar o maior impacto no organismo."
Caso a pista dos genes Hox possa ser retomada, será que as duplicações teriam a ver com a grande variabilidade de estruturas corporais dos vertebrados, que lhes permitiu colonizar terra, água e ar? "Eu poderia imaginar que a quadruplicação teve um papel importante nisso. Mas isso é só especulação minha -eu não seria capaz de associar nenhuma modificação especial em morfologia com as duplicações do genoma", acautela-se Boore. Ele diz imaginar que alterações bioquímicas -responsáveis, por exemplo, pelo sistema de defesa do organismo- possam ter sido tão importantes quanto as de forma para explicar o triunfo evolutivo das criaturas com coluna vertebral.


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