São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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Ciência em Dia

Katrina e Catarina

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Não pense o leitor que são duas filhas de Francisca. Quando muito, primas distantes. Melhor dizendo, primos, porque ambos são nomes femininos adotados para dois furacões que já entraram para a história, um deles no Brasil.
Katrina está na memória de todos, após arrasar o sul dos Estados Unidos há um mês. Foi mencionado aqui, semana passada, como o início de um vendaval que poderá, quem sabe, varrer do mapa a política diversionista de George W. Bush diante da mudança climática global. Na prática, os governos estaduais americanos já começaram a fazê-lo, adotando as suas próprias medidas contra emissões de gases do efeito estufa.


Enquanto isso, no Senado dos EUA uma comissão sobre o aquecimento global ouvia o depoimento de Michael Crichton


Aqui também foi dito que, não havendo no Brasil furacões, a posição titubeante do governo tupiniquim é lancetada na esfera pública a golpes de taxas de desmatamento da Amazônia, nossa maior contribuição para o aquecimento global. Fica o dito pelo não-dito, ao menos no que se refere a furacões. Afinal, aí está o Catarina, ou esteve, para provar que por aqui também há furacão e mais motivos para se preocupar com os riscos da mudança climática.
O lembrete foi feito por Carlos Nobre, um dos autores do artigo aqui mencionado, que havia saído no periódico científico "Climatic Change". O artigo defende um compromisso de reduções voluntárias de desmatamento a ser adotado pelo Brasil, se nações ricas se dispuserem a pagar por isso. A proposta não está prevista no Protocolo de Kyoto, entre outras razões porque o governo deste país sempre a combateu, muito antes de Lula e FHC.
Nobre, climatologista que em 2006 se tornará presidente do Programa Internacional Geosfera-Biosfera (www.igbp.kva.se), alerta que já não há dúvida na comunidade científica quanto à identidade do Catarina. A tempestade que fustigou a costa catarinense em março de 2004 foi de fato o primeiro ciclone tropical (isto é, furacão) registrado no hemisfério Sul.
Só se discute, ainda, se ele foi também mais um sintoma de que a mudança climática global já se encontra em curso. Afinal, a multiplicação de eventos climáticos extremos como esse é uma das conseqüências previstas do aquecimento global. Mesmo primas distantes, Catarina e Katrina podem acabar fazendo parte de uma família da pesada.
Na opinião de Nobre, os próximos meses trarão uma avalanche de artigos científicos indicando outras assinaturas de uma mudança climática que transborda os limites de variabilidade natural do clima. Bingo. Anteontem, o National Snow and Ice Data Center (www.nsidc.org) de Boulder, Colorado (EUA), anunciou que a calota de gelo sobre o mar no pólo Norte atingiu neste ano um recorde secular de diminuição.
Enquanto isso, no Senado dos EUA uma comissão sobre o aquecimento global ouvia o depoimento de uma autoridade contrária à teoria da mudança climática. Seu nome: Michael Crichton, um escritor de best sellers. É de um realismo fantástico, algo como convocar Paulo Coelho à CPI do Mensalão para explicar as alquimias de Marcos Valério.

Marcelo Leite é doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http:/ / cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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