São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2008

Texto Anterior | Índice

O bonde do clima


O governo não vai refazer o inventário de gases-estufa

Hoje, Finados, é um bom dia para pensar no futuro. O pessimismo, deste ponto de vista atual, mostra-se a maneira mais correta de encarar a realidade.
Uma das desvantagens de viver muito, pelo menos meio século, é ver de tudo acontecer -e também o seu contrário. Veja só o que está ocorrendo com o assunto mais importante do mundo, o clima do planeta.
Quem tiver mais de 30 anos talvez se lembre do bafafá em torno da Cúpula da Terra, a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio em 1992, ou Eco-92.
Mais de uma centena de chefes de Estado presentes, inclusive George Bush (pai). Até cadernos diários sobre ecologia eram publicados em jornais brasileiros. Por algumas semanas, não se falou de outra coisa.
Assinou-se no Rio um tratado para impedir uma mudança perigosa do clima, outro para proteger a biodiversidade. Aí vieram as sucessivas crises financeiras que deixaram países como o Brasil de pires na mão. O receituário dito neoliberal dominou o pensamento econômico por toda parte.
Sob um vendaval desregulamentador, o tema do ambiente global minguou até quase desaparecer da pauta.
Clima e biodiversidade que se danassem. O mundo tinha outras prioridades. Visto do presente, o Protocolo de Kyoto adotado em 1997 -espécie de regulamentação da Convenção do Clima- reduz-se a um anticlímax. Na época, pareceu a muitos que o debate sobre o que fazer para enfrentar o aquecimento global enfim entrava nos trilhos.
O assunto ressuscitou no começo de 2007. Com a divulgação a prestações do Quarto Relatório de Avaliação (apelidado AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, colegiado de pesquisadores instituído pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial), o aquecimento global voltou às manchetes.
A renovada preocupação com o clima não veio para ficar. Durou só enquanto as novidades do IPCC reverberaram em nossa propensão oca para alarmar-se com tudo e qualquer coisa.
Ao desgaste natural trazido pela superexposição do tema se soma agora uma ameaça maior -mais imediata- que se levanta no horizonte: a crise financeira mundial.
Alguém acredita que, nessa conjuntura, os governos mundiais conseguirão coordenar-se e adotar medidas penosas para conter o aquecimento global nos próximos 14 meses, alinhavando um substituto de Kyoto na Conferência de Copenhague?
Considere o caso do Brasil. O governo federal até produziu um documento preliminar que teve a coragem de chamar de Plano Nacional de Mudanças Climáticas. É pífio, por não conter objetivos claros de redução de emissão de gases do efeito estufa.
Nada a estranhar, num governo que só pensa em hidrelétricas na Amazônia, em tornar-se exportador de energia fóssil enterrada no pré-sal há centenas de milhões de anos e em salpicar o território nacional com meia centena de usinas termonucleares. E que já começa a entrar em pânico, ao descobrir que a marola financeira está mais para tsunami.
Diante dele, é fácil prever que este governo não vai refazer o inventário nacional de gases-estufa. Não vai dar a atenção devida para conservação de energia, eficiência energética, energias alternativas. Não vai tornar obrigatório o selo indicador de consumo de combustível dos carros.
Não há mais clima para nada disso.
Nunca houve. Um dia não haverá mais clima para nada.


MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


Texto Anterior: A coisa certa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.