|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ciência de Estado
Livro conta os bastidores da primeira expedição astronômica à Amazônia, no século 18
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Em 3 de setembro de
1759, seguindo os conselhos de seu todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (o marquês de Pombal), o rei de Portugal, dom José 1º, assinou uma lei que determinava que os jesuítas fossem "expulsos de todos os
Meus Reinos e Domínios". A
notícia demorou mais de dez
meses para atravessar o Atlântico e chegar a Ibirajuba, perto
de Belém. Era o fim da linha
para Ignác Szentmártonyi, astrônomo, filho de pai húngaro e
mãe croata, sacerdote jesuíta.
Preso por ordem real e remetido para Lisboa poucos meses
depois, Szentmártonyi passaria 17 anos nas piores masmorras de Portugal antes que a perseguição à Companhia de Jesus
finalmente arrefecesse -destino um bocado improvável para
quem tinha chegado ao Pará
como membro de uma missão
científica considerada estratégica pela própria Coroa.
Szentmártonyi, cujo nome
impronunciável os portugueses e paraenses transformaram
em "Sanmartoni", juntamente
com um colega bolonhês, o
também astrônomo e padre
Giovanni Angelo Brunelli, vieram parar na Amazônia como
parte do esforço de determinar
com precisão as fronteiras do
império colonial português.
Afinal, em 1750, os soberanos da Espanha e de Portugal
tinham redefinido os limites de
seus domínios por meio do
Tratado de Madri, que reconhecia como fato consumado o
grande avanço para o oeste do
território português, para além
da linha do antigo Tratado de
Tordesilhas. Mas, para saber
onde ficavam as novas fronteiras, era necessário estabelecer
com precisão a latitude e a longitude das regiões mais remotas dos dois impérios, o que explica a convocação da dupla de
especialistas estrangeiros.
O livro "Astronomia na Amazônia no século XVIII", de Carlos Francisco Moura, usa documentos pouco conhecidos para
reconstruir esse capítulo obscuro e fascinante da história da
ciência no Brasil. A fluidez narrativa não é o forte da obra
-Moura deixa claro que seu
público-alvo é acadêmico.
Mesmo assim, o livro traça um
retrato bastante claro da interação entre astronomia e geopolítica na Amazônia colonial.
Não é de estranhar que a
aventura dos astrônomos tenha acontecido sob os auspícios de Carvalho e Melo (ainda
longe de receber o título de
marquês quando a missão
científica partiu da foz do Tejo,
em junho de 1753). O futuro
Pombal estava determinado a
usar os avanços da ciência setecentista para fortalecer a posição de Portugal no mundo.
Além do mais, seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, tinha sido nomeado, poucos anos antes, governador do
Grão-Pará e Maranhão (quase
toda a Amazônia Legal atual), o
que, claro, facilitava coordenar
as expedições para o interior.
Contratempos
Usando os métodos mais empregados para calcular coordenadas geográficas no século 18,
que envolviam observações de
eclipses da Lua e dos grandes
satélites de Júpiter descobertos por Galileu, a equipe liderada por Szentmártonyi e Brunelli determinou a latitude e a
longitude de Belém, de Macapá
e de Mariuá (hoje Barcelos, no
Amazonas), além de mapear
boa parte do percurso que fizeram subindo os rios Amazonas
e Negro. O astrônomo jesuíta
também foi um dos primeiros a
usar um termômetro de Fahrenheit para fazer medições de
temperatura na Amazônia,
com dados que podem ser interessantes para entender como
os últimos séculos de mudança
climática provocada pelo homem estão afetando a região,
afirma Moura.
Além da saga dos dois astrônomos -Brunelli, que não era
jesuíta, virou professor de matemática do Real Colégio dos
Nobres e da Academia Real de
Marinha ao voltar a Portugal-,
o livro mostra a dor de cabeça
que era tentar fazer ciência
num fim de mundo como a
Amazônia colonial.
A comitiva dos pesquisadores precisou esperar meses para que seus instrumentos (telescópios, lunetas, sextantes)
fizessem a travessia marítima,
só para descobrir que boa parte
deles tinha se estragado na jornada, o que motivou mais atrasos antes que novos aparelhos
chegassem da Europa.
Para poder realizar sua missão a contento, a dupla e seus
colaboradores precisavam
também importar uma biblioteca científica inteira. O conjunto incluía tanto obras de figurões da física e da astronomia, como Newton e Cassini,
quanto o obscuro "Observaciones Astronomicas, y Physicas
em los Reinos del Perú", de
Dom Jorge Juan e Dom Antonio de Ulloa.
Em meio às peripécias para
conseguir aparelhos e livros,
transparece o lado mais sinistro do "ilustrado" governo de
Pombal. Não fica muito claro o
porquê, mas o ministro português parece determinado a incriminar Szentmártonyi.
Mendonça Furtado, obediente, responde carta do irmão poderoso dizendo: "E pelo
que toca a este padre, me haverei com ele na forma como V.
Exa. me avisa, e como há estas
provas contra ele, remeto a V.
Exa. uma carta que aqui chegou
depois de sua partida deste arraial". Para o império português, pelo visto, a astronomia
só valia como serva do poder.
LIVRO - "Astronomia na Amazônia
no século XVIII"
de Carlos Francisco Moura
Real Gabinete Português de Leitura, 168 págs., R$ 35,00
Texto Anterior: +Marcelo Gleiser: A pressa do tempo Próximo Texto: +Marcelo Leite: L.I.X.O. Índice
|