São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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Piratas do século 21

Descoberta de tesouro por empresa americana em navio naufragado reacende polêmica sobre tráfico de peças arqueológicas

Associated Press/Odyssey Marine Exploration
Dono da Odyssey Marine Exploration, Greg Stemm (esq.), examina moedas encontradas em naufrágio não-revelado


RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Por que tesouros de ouro e prata fascinam tanto, além do óbvio aspecto financeiro, especialmente se foram achados no fundo do mar, ou se foram enterrados por piratas, soberanos astecas ou faraós?
A resposta é longa, como mostra o anúncio no último dia 18, pela empresa americana Odyssey Marine Exploration, daquele que pode vir a ser o maior tesouro de todos os tempos: 500 mil moedas de ouro e prata retiradas de um misterioso naufrágio cuja localização foi mantida em segredo.
Longa e complexa, já que mexe diretamente com o chamado "imaginário".
O escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte, nascido em 1951, tem as virtudes e vícios dos homens da sua geração. Acabou conhecido pelo personagem Capitão Alatriste, protagonista de vários romances ambientados no "siglo de oro" espanhol (parte no século 16, parte no 17) no qual a corte de Madri dava as cartas em boa área do mundo, lastreada no ouro e na prata extraídos das Américas. Alatriste virou filme no ano passado, o mais caro da história do cinema espanhol.
O jornalista e escritor hoje pertence à vetusta Real Academia Espanhola; mas, mesmo assim, um de seus mais famosos romances se inspira em uma história em quadrinhos. Composta, é certo, por um dos mestres da arte, o belga Georges Prosper Remi (1907-1983), mais conhecido como Hergé. O personagem de Hergé era um jovem jornalista -Tintim.
No romance "A Carta Esférica", de Pérez-Reverte, boa parte do imaginário vem de um clássico dos quadrinhos de Hergé, "O Tesouro de Rackham, o Terrível".
Tintim e seu amigo, o capitão Haddock, entram em escafandros e em um mini-submarino com forma de tubarão para investigar o naufrágio do navio corsário "La Licorne".
Não era ainda algo plausível ou comum na época, mas isso nunca impediu Hergé de ser um visionário com toques de Júlio Verne. Como sabem os desta geração, Tintim e colegas chegaram à Lua antes de Neil Armstrong e companhia.
Hoje tudo isso é comum. Até demais, já que a Odyssey Marine Exploration também usa mini-subimarinos para seu trabalho, que alguns chamam de rapina ou pirataria.
Dias atrás, o canal "History Channel" exibiu um documentário com título preciso: "The Real Tomb-Hunters" ("Os Verdadeiros Caçadores de Tumbas"). Filmes como os da série Indiana Jones e videogames que viraram filme, como "Tomb Raider", passam a idéia de que fazer arqueologia é pouco diferente de fazer um saque.
Indiana Jones procurava relíquias para um museu (e era pago por isso). Já o didático documentário trata de mostrar como existem arqueólogos de verdade que arriscam a vida, mas fazem pesquisa no processo. Procuram informações sobre a humanidade, não ouro e prata -apesar de tropeçarem com relíquias do tipo.
Dado do documentário: o tráfico de artefatos históricos e arqueológicos vem logo depois do de drogas e armas na lista de delitos internacionais, e antes da lavagem de dinheiro.
A Odyssey Marine Exploration ainda não revelou onde achou 17 toneladas de moedas de ouro e prata, nem de qual navio retirou o butim. A empresa quer, naturalmente, se resguardar da miríade de loucos alegando propriedade que costuma surgir nesses casos. Ou dos possíveis processos, já que os dois possíveis navios mencionados como origem do tesouro, o "Merchant Royal" e o "Sussex", poderiam estar ou em águas territoriais do Reino Unido ou da Espanha, ou poderiam ter carga que ainda pertenceria a estes países.
Não há uma convenção internacional que diga quem é dono inconteste de objetos achados desse modo. Cada país tem uma legislação própria, mais ou menos restritiva para companhias privadas de resgate.
Deu no "New York Times": "Trata-se de roubo da história pública e da história mundial", afirmou o arqueólogo náutico Kevin Crisman, da Universidade A&M do Texas.
Para Crisman, é o charme, o imaginário da busca de tesouros perdidos, que faz o público esquecer as implicações éticas desse tipo de resgate. "Se esses caras plantassem umas bananas de dinamite na Esfinge, ou arrebentassem o chão da Acrópole, estariam na cadeia em um minuto", afirmou o arqueólogo.
Em um dos filmes de Indiana Jones, o herói arrebenta tudo que está em volta só para conseguir uma estatueta de outro, lembra a arqueóloga Lisa Lucero, no documentário do "History Channel". Ela trabalha com arqueologia dos maias na América Central, região onde autênticos "ladrões de tumba" ameaçam de morte rotineiramente tanto arqueólogos quanto a população local.
A Odyssey se defende alegando que fez um trabalho de arqueologia de alto nível no local do navio ainda misterioso que rendeu o tesouro.
OK, quem viver, verá. Ciência só existe se for publicada.
Vai saber quando.


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