São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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Reino Unido quer assumir liderança no combate ao efeito estufa aproveitando vácuo deixado por George W. Bush

O rei do clima

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Sir David King, conselheiro científico do primeiro-ministro Tony Blair, no pavilhão das autoridades do aeroporto de Congonhas


CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

O imperador está morto. Longa vida à rainha. Assim pode ser resumida a mensagem que o governo britânico mandou entregar ao Brasil nesta semana no que diz respeito às mudanças climáticas globais. O imperador, no caso, é George W. Bush, presidente dos EUA, que abdicou da liderança global no tema ao rejeitar o Protocolo de Kyoto. A rainha é ela mesma: Elizabeth 2ª, da Inglaterra, ou mais precisamente seu primeiro-ministro, Tony Blair.
A mensagem é que a União Européia está assumindo o papel de líder mundial na discussão sobre o combate ao aquecimento global e a adoção de energias limpas e quer o apoio dos gigantes do Terceiro Mundo (Brasil, China, Índia, África do Sul e México). Para entregá-la, o governo britânico designou literalmente um cavaleiro: Sir David King, conselheiro científico de Blair.
King, um físico sul-africano de 65 anos, tem sido o principal porta-voz do combate às mudanças climáticas nos últimos dois anos. Fez a cabeça de Blair para que o premiê elegesse o efeito estufa, juntamente com a questão da África, o tema prioritário da presidência britânica do G8 (grupo das sete nações mais ricas do mundo e a Rússia), cuja cúpula se reúne semana que vem na Escócia.
Atuou nos bastidores para que a Rússia ratificasse o Protocolo de Kyoto em troca de uma vaga na Organização Mundial do Comércio. Articulou a produção de um documento no qual o Reino Unido se propõe a cortar 60% das suas emissões de gases-estufa até 2050.
Leia abaixo a entrevista que o cientista concedeu à Folha na última quarta-feira, em um carro, entre os aeroportos de Congonhas e Guarulhos, em São Paulo:
 

Folha - O que o sr. ouviu sobre a posição brasileira na questão climática?
Sir David King -
Há um entendimento claro no Brasil dos problemas potenciais associados à mudança climática. O governo brasileiro, acho, tomará a posição de que ação é necessária. A posição britânica é que, sob Kyoto, a ação necessária vem do mundo desenvolvido. Então, nós não estamos demandando que o Brasil ou os outros países [do Terceiro Mundo] que estamos convidando a Gleneagles [Escócia] daqui a uma semana tomem medidas ou se comprometam com medidas. O que eu queria explicar é que o governo britânico quer iniciar um processo de negociação no G8+5, na qual nós possamos fornecer uma liderança que possa ser seguida pelo resto do mundo.

Folha - Alguém vai falar em metas e prazos de redução de emissões na reunião do G8?
King -
Isso é função da Convenção do Clima. Não nos vemos discutindo prazos dentro desse encontro.

Folha - O sr. acha que os EUA estão moralmente obrigados a vir à mesa de negociações climáticas após o apoio britânico à guerra no Iraque? O primeiro-ministro Tony Blair acha que esses temas estão conectados?
King -
Acho que o primeiro-ministro Blair nunca disse que os dois assuntos estão conectados. Nós temos uma relação especial com os EUA. E nossa posição sobre o Iraque é uma manifestação dessa relação especial. E quando há uma relação especial, claro que você pode esperar que outras coisas também fluam bem.

Folha - Qual é a essência do documento britânico sobre o pós-Kyoto?
King -
O documento britânico faz uma declaração clara: é um país dizendo que planeja ir além de Kyoto. Kyoto nos leva a 2012. Nós queremos compromissos até 2050, e esses compromissos implicam que em 2020 nós já teremos ido além de Kyoto. E a razão pela qual fazemos isso é porque isso nos dá uma posição de liderança. Em vez de esperar uma concordância de todas as outras nações, nós estamos agindo.

Folha - As perspectivas do aquecimento só pioram a cada dia. A revista "Nature" trouxe um estudo mostrando que até o combate à poluição por aerossóis esquentará a Terra. O foco do debate não deveria ser adaptação em vez de mitigação?
King -
A questão dos aerossóis é uma das mais difíceis. O "apagamento global" que tem ocorrido ao longo dos últimos 40 anos é em grande parte devido aos aerossóis. Mas agora que nós introduzimos catalisadores e controles ambientais, o total de aerossóis na atmosfera está se reduzindo. Então, há uma preocupação de que os modelos anteriores estejam subestimando o aquecimento. Agora, adaptação e mitigação devem andar juntas. Adaptação é algo que as pessoas esquecem, porque o clima está mudando de forma relativamente lenta de um ano ao outro. Nós nos esquecemos de que os verões mais quentes na Europa Central no século passado, em 1948 e 1952, são agora a média para os verões da Europa. Os países ricos podem bancar o custo da adaptação. O problema é com os mais pobres.

Folha - O Reino Unido vai cumprir sua meta de Kyoto?
King -
Sim. O Reino Unido, desde 1990, reduziu sua cesta de emissões de gases-estufa em 14%. Então já estamos além da meta da Kyoto. Você pode ter lido que no Reino Unido houve uma pequena elevação nas emissões nos últimos dois anos, mas acredito que veremos uma queda significativa no ano que vem, porque já descobrimos a fonte.

Folha - Qual era?
King -
Pelo menos em parte foi porque uma das usinas nucleares foi temporariamente desligada e substituída por uma usina a carvão.

Folha - Acha que a energia nuclear...
King -
Eu sabia que você iria fazer essa pergunta. Se ela tem um papel a desempenhar? A resposta é relativamente fácil: a energia da fissão nuclear está disponível, modelos modernos de usinas de fissão são muito mais eficientes que modelos anteriores e produzem muito menos lixo radioativo que modelos anteriores. Elas não emitem gás carbônico.

Folha - Outro tópico da sua visita ao Brasil foi o Iter.
King -
Sim, o Reator Termonuclear Experimental Internacional será agora construído em Cadarache, como foi noticiado, e eu estou satisfeitíssimo, porque eu fui o encarregado de ir ao Japão e discutir uma solução ao problema, o que põe o Japão e a União Européia como parceiros-sêniores do programa. Tive discussões muito úteis sobre a possibilidade de o Brasil ser o sétimo parceiro. Há também conversas para que a Índia seja o oitavo.

Folha - Por que o Brasil deve entrar?
King -
Por várias razões. No Brasil vocês têm vários PhDs trabalhando no campo. Também descobri uma coisa muito interessante nesta viagem: vocês são uma enorme fonte de nióbio. O Iter funciona com base no controle magnético do plasma usando molas coloidais, cujo principal constituinte é o nióbio.

Folha - Como foi a reação brasileira ao convite?
King -
Muito positiva. A União Européia está mandando uma delegação em um mês para discutir detalhes da ciência de fusão e de como a colaboração deve funcionar.


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