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BIOÉTICA
Luiz Henrique da Silveira diz que genética permitirá evitar filhos "feios" ou "idiotas"; biólogos condenam proposta
Governador de SC louva eugenia em artigo
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Um artigo publicado no último
domingo pelo governador de
Santa Catarina, Luiz Henrique da
Silveira (PMDB), trouxe de volta
um fantasma da ética científica: a
eugenia. O governador defendeu
a utilização das descobertas sobre
o genoma humano para que as
pessoas possam evitar que seus filhos nasçam "feios, deformados,
deficientes ou idiotas".
Com o título "O DNA Espartano" (em referência às práticas de
seleção de crianças na antiga cidade grega de Esparta), o texto foi
publicado no jornal diário "A Notícia" (an.uol.com.br), de Joinville, no qual o governador assina
semanalmente um texto opinativo exclusivo. A assessoria de imprensa do governador, procurada
pela Folha durante toda a tarde de
ontem, disse não ter conseguido
localizá-lo para comentar o caso.
Apesar das idéias polêmicas do
texto -o governador fala não
apenas em melhoramento genético de bebês antes do nascimento
mas também em filhos que poderiam ser clones de gênios ou pessoas de beleza excepcional-, a
reação ao artigo foi tímida, mesmo dentro de Santa Catarina.
Um deputado do PT catarinense, Afrânio Boppré, condenou na
Assembléia Legislativa as afirmações de Luiz Henrique. O mesmo
fez o biólogo João de Deus Medeiros, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em carta
enviada ao jornal.
Pseudociência
"A história já nos mostrou quão
infeliz se torna a apropriação de
conceitos pseudocientíficos para
legitimar concepções ideológicas.
Nesse contexto, a eugenia, não
fosse o artigo do governador, nos
parecia definitivamente sepultada
com a sucumbência das pretensões de Hitler", escreve Medeiros.
Em seu artigo, o governador começa citando o exemplo da Esparta, cidade do sul da Grécia que
se tornou, durante algum tempo,
a maior potência militar da região. Acontece que a eugenia, ou
seja, a seleção das pessoas que supostamente teriam as melhores
características físicas e mentais e a
eliminação das doentes ou fracas,
"era o dogma mais importante
para os espartanos", escreve Luiz
Henrique. Os bebês recém-nascidos de Esparta eram inspecionados por um ancião de sua tribo. Se
tivessem qualquer deformidade
ou fossem fracos, eram jogados
num abismo chamado "Apothetai" ("as descartadas").
O governador afirma que o
avanço das pesquisas genéticas,
como a soletração do genoma humano, permitirá um "novo cenário eugênico", que "não se dará
pela ação da adaga, mas pela evolução da ciência".
Apesar de ter sido ministro da
Ciência e Tecnologia entre 1987 e
1988 (governo Sarney), Luiz Henrique escorrega na hora de analisar as implicações científicas de
sua idéia, diz Mayana Zatz, bióloga da USP especialista em doenças genéticas. "Não faz o menor
sentido", resume a pesquisadora,
cujo laboratório oferece aconselhamento a famílias que carregam
em seu DNA mutações que podem estar ligadas a males incuráveis. "São especulações que, hoje,
não têm a menor possibilidade de
se realizar. Além do mais, quem é
que decide o que é bonito e o que é
feio? O famoso nariz romano, que
eles achavam lindo, não seria visto do mesmo jeito por nós", diz.
Desequilíbrio
Zatz já vê problemas na escolha
do sexo dos bebês, algo muito
mais próximo da realidade hoje
por envolver manipulação mais
simples -basta garantir que o espermatozóide do pai carregue o
cromossomo Y, a marca genética
da masculinidade. "A escolha do
sexo dos bebês entre os chineses
já mostrou que você pode criar
um desequilíbrio muito grande
entre homens e mulheres."
"O texto dele é tão ridículo que
fica difícil articular uma resposta
científica", declarou à Folha a geneticista Maria Cátira Bortolini,
do Departamento de Genética da
UFRGS (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul), que também
chama a atenção para o absurdo
de traçar uma equivalência entre
"beleza" e a estrutura dos genes.
Afinal, características como aparência física geral ou inteligência,
também mencionada pelo governador, envolvem a interação de
centenas ou até milhares de proteínas codificadas pelos genes entre si e com o ambiente em que a
pessoa se desenvolve.
"O ambiente é tudo", afirma
Zatz. "É o que acontece com
aqueles bancos de esperma de
vencedores do Nobel. Um monte
de mulheres fez inseminação e até
agora não nasceu nenhum novo
gênio", brinca. Uma referência do
texto mostra de onde o governador pode ter tirado as idéias: ele
cita o biólogo americano James
Watson, um dos descobridores da
estrutura do DNA, criticado por
defender o melhoramento da beleza e da inteligência humanos.
"Nunca o ritmo das revoluções
científicas foi tão rápido, o que é
bom por um lado, mas tem alguns
subprodutos não muito desejáveis. Um deles é surgirem pessoas
que se sentem capazes de emitir
opiniões supostamente sobre bases científicas", lamenta Bortolini.
"O que mais me ofende, e ao
mesmo tempo serve de alerta, é
ver minha área de trabalho ser
usada para fundamentar uma argumentação estapafúrdia dessas", diz Marcelo Nóbrega, biólogo brasileiro da Universidade de
Chicago (EUA). "É na ignorância
científica que está a maior tragédia do que foi dito por ele."
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