São Paulo, sábado, 03 de setembro de 2005

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BIOÉTICA

Luiz Henrique da Silveira diz que genética permitirá evitar filhos "feios" ou "idiotas"; biólogos condenam proposta

Governador de SC louva eugenia em artigo

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um artigo publicado no último domingo pelo governador de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira (PMDB), trouxe de volta um fantasma da ética científica: a eugenia. O governador defendeu a utilização das descobertas sobre o genoma humano para que as pessoas possam evitar que seus filhos nasçam "feios, deformados, deficientes ou idiotas".
Com o título "O DNA Espartano" (em referência às práticas de seleção de crianças na antiga cidade grega de Esparta), o texto foi publicado no jornal diário "A Notícia" (an.uol.com.br), de Joinville, no qual o governador assina semanalmente um texto opinativo exclusivo. A assessoria de imprensa do governador, procurada pela Folha durante toda a tarde de ontem, disse não ter conseguido localizá-lo para comentar o caso.
Apesar das idéias polêmicas do texto -o governador fala não apenas em melhoramento genético de bebês antes do nascimento mas também em filhos que poderiam ser clones de gênios ou pessoas de beleza excepcional-, a reação ao artigo foi tímida, mesmo dentro de Santa Catarina.
Um deputado do PT catarinense, Afrânio Boppré, condenou na Assembléia Legislativa as afirmações de Luiz Henrique. O mesmo fez o biólogo João de Deus Medeiros, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em carta enviada ao jornal.

Pseudociência
"A história já nos mostrou quão infeliz se torna a apropriação de conceitos pseudocientíficos para legitimar concepções ideológicas. Nesse contexto, a eugenia, não fosse o artigo do governador, nos parecia definitivamente sepultada com a sucumbência das pretensões de Hitler", escreve Medeiros.
Em seu artigo, o governador começa citando o exemplo da Esparta, cidade do sul da Grécia que se tornou, durante algum tempo, a maior potência militar da região. Acontece que a eugenia, ou seja, a seleção das pessoas que supostamente teriam as melhores características físicas e mentais e a eliminação das doentes ou fracas, "era o dogma mais importante para os espartanos", escreve Luiz Henrique. Os bebês recém-nascidos de Esparta eram inspecionados por um ancião de sua tribo. Se tivessem qualquer deformidade ou fossem fracos, eram jogados num abismo chamado "Apothetai" ("as descartadas").
O governador afirma que o avanço das pesquisas genéticas, como a soletração do genoma humano, permitirá um "novo cenário eugênico", que "não se dará pela ação da adaga, mas pela evolução da ciência".
Apesar de ter sido ministro da Ciência e Tecnologia entre 1987 e 1988 (governo Sarney), Luiz Henrique escorrega na hora de analisar as implicações científicas de sua idéia, diz Mayana Zatz, bióloga da USP especialista em doenças genéticas. "Não faz o menor sentido", resume a pesquisadora, cujo laboratório oferece aconselhamento a famílias que carregam em seu DNA mutações que podem estar ligadas a males incuráveis. "São especulações que, hoje, não têm a menor possibilidade de se realizar. Além do mais, quem é que decide o que é bonito e o que é feio? O famoso nariz romano, que eles achavam lindo, não seria visto do mesmo jeito por nós", diz.

Desequilíbrio
Zatz já vê problemas na escolha do sexo dos bebês, algo muito mais próximo da realidade hoje por envolver manipulação mais simples -basta garantir que o espermatozóide do pai carregue o cromossomo Y, a marca genética da masculinidade. "A escolha do sexo dos bebês entre os chineses já mostrou que você pode criar um desequilíbrio muito grande entre homens e mulheres."
"O texto dele é tão ridículo que fica difícil articular uma resposta científica", declarou à Folha a geneticista Maria Cátira Bortolini, do Departamento de Genética da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que também chama a atenção para o absurdo de traçar uma equivalência entre "beleza" e a estrutura dos genes. Afinal, características como aparência física geral ou inteligência, também mencionada pelo governador, envolvem a interação de centenas ou até milhares de proteínas codificadas pelos genes entre si e com o ambiente em que a pessoa se desenvolve.
"O ambiente é tudo", afirma Zatz. "É o que acontece com aqueles bancos de esperma de vencedores do Nobel. Um monte de mulheres fez inseminação e até agora não nasceu nenhum novo gênio", brinca. Uma referência do texto mostra de onde o governador pode ter tirado as idéias: ele cita o biólogo americano James Watson, um dos descobridores da estrutura do DNA, criticado por defender o melhoramento da beleza e da inteligência humanos.
"Nunca o ritmo das revoluções científicas foi tão rápido, o que é bom por um lado, mas tem alguns subprodutos não muito desejáveis. Um deles é surgirem pessoas que se sentem capazes de emitir opiniões supostamente sobre bases científicas", lamenta Bortolini.
"O que mais me ofende, e ao mesmo tempo serve de alerta, é ver minha área de trabalho ser usada para fundamentar uma argumentação estapafúrdia dessas", diz Marcelo Nóbrega, biólogo brasileiro da Universidade de Chicago (EUA). "É na ignorância científica que está a maior tragédia do que foi dito por ele."


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