São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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Marcelo Leite

O fogo do biocombustível


Não é à toa que os tradicionais dilapidadores da natureza riem


O deserto de idéias da campanha eleitoral tem também o seu lado "verde". O silêncio dos programas de governo (programas?) no quesito ambiental revela-se ensurdecedor. A reeleição de Lula é dada como favas contadas, e o presidente que nada viu agora só parece ter olhos para a semente de panacéia energética que plantou neste primeiro mandato: os biocombustíveis.
Na quarta-feira, Lula discursou para empresários, inebriado, sobre sua nova paixão: "Posso dizer para vocês que a paixão pelos biocombustíveis é de tal magnitude dentro do governo, que teria bem uns dez ministros preparados para vir aqui e passar horas e horas debatendo com vocês", entusiasmou-se o presidente candidato diante dos potenciais doadores. "Esse, na verdade, não é mais um biocombustível, é uma paixão governamental, empresarial, da agricultura e, sobretudo, do povo trabalhador deste país, porque o programa, além da magnitude do biocombustível, tem a magnitude da biocidadania e de tantas outras bios que a gente vai criando pelo Brasil afora."
É a biopolítica na versão Lula: da natureza só quer a produtividade.
Sem rima necessária com integridade e sustentabilidade. Nem com a transversalidade de Marina Silva.
Para quem não acompanha o assunto: a ministra do Meio Ambiente assumiu em 2003 prometendo colocar a questão ambiental no centro do planejamento federal, de onde sempre esteve alijada. Hidrelétricas, hidrovias e rodovias eram projetadas para a Amazônia sem consideração com o desmatamento que induziriam. O cerrado foi imolado no altar do agronegócio. Faltava "transversalidade".
Algum progresso se fez, vá lá. Ao menos o presidente se sentiu obrigado, no discurso de quarta-feira, a tirar o chapéu para o ambiente: "Modernizamos nosso sistema de fiscalização, fortalecemos institucionalmente os órgãos de proteção ao meio ambiente e aumentamos, de forma muito expressiva, em extensão e quantidade, as áreas de conservação", afirmou. "Ao mesmo tempo, iniciativas inovadoras como a Lei de Gestão de Florestas Públicas possibilitam atividades econômicas ambientalmente sustentáveis, especialmente na Amazônia, reduzindo assim o risco das derrubadas desenfreadas."
Trata-se de cortesia com o chapéu alheio. O setor ambiental do governo federal pouco ou nada poderá opor à previsível avalanche de demanda por biodiesel e álcool, num mundo em que a ficha do aquecimento global começa a cair. Estados Unidos, China e Índia estão na fila para comprar, mas o Brasil é o único vendedor à vista: tem 1,7 milhão de km2 de terras disponíveis com potencial para agricultura mecanizada, um terço na Amazônia, que já sofre com o agronegócio.
Não é à toa que os empresários nacionais, tradicionais dilapidadores de capital natural, estejam rindo de orelha a orelha com o biofogo de Lula. Um sinal de alerta foi dado pela Fiesp ao contestar na Justiça legislação estadual que determina a recomposição dos 20% de reserva legal de mata que toda propriedade rural deveria manter. Criar corredores ambientais entre os raros fragmentos de mata atlântica que restaram no oeste paulista, pelos quais possam circular animais e pólen, não combina com a sanha exportadora que assola o país.
Nada contra os biocombustíveis, que afinal são uma alternativa renovável aos combustíveis fósseis, como o petróleo. A não ser, claro está, que acendam o rastilho para incendiar de vez o cerrado (metade já foi) e a Amazônia (quase um quinto).
Lula está brincando com fogo.

MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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