São Paulo, quinta, 3 de setembro de 1998

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CIÊNCIA
Pesquisa busca explicar por que o sistema de defesa orgânica da gestante não ataca o feto, um "corpo estranho' no útero
Feto se defende da mãe, diz estudo

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Um grupo de pesquisadores nos EUA descobriu como o feto consegue "desligar" parte do sistema de defesa da mãe contra infecções -com isso evitando ser vítima do sistema imunológico materno.
Ou seja, antes mesmo de nascer, um bebê já sabe "se virar", se defendendo habilmente contra um "inimigo" que poderia rapidamente matá-lo: sua própria mãe.
Desde 1953 que os cientistas se perguntavam como o feto consegue sobreviver dentro do corpo da mulher, sendo ele um objeto estranho ao organismo materno.
Um bebê tem apenas metade do material genético proveniente da mãe. O resto vem do pai. Isso basta para ele ser considerado estranho pelo organismo dela -como se fosse um vírus ou uma bactéria.
A contradição fora apontada pelo pesquisador britânico Peter Brian Medawar (1915-1987), prêmio Nobel de Medicina nascido no Brasil. Segundo a hipótese mais aceita para explicar o caso, haveria algum tipo de "tolerância" imunológica por parte da mãe.
O novo estudo, publicado na revista "Nature" de 27 de agosto último, foi feito com camundongos e mostrou um mecanismo bioquímico de defesa do feto.
Os sete autores, liderados por Andrew L. Mellor, pertencem ao Medical College da Geórgia, de Augusta, e à Universidade da Geórgia em Athens (sul dos EUA).
O feto produziria uma enzima, a IDO, capaz de eliminar uma substância chamada triptofan, um aminoácido que ativa a ação de células de defesa tipo T da mãe.
Os pesquisadores usaram camundongos incapazes de produzir a IDO.
Os fetos eram de dois tipos, uns incluindo genes paternos bem diferentes, e outros que tinham apenas genes iguais aos maternos, de uma linhagem de animais com alto grau de consanguinidade.
Houve aborto espontâneo dos fetos que tinham genes paternos bem diferentes; os outros sobreviveram.
A descoberta coloca uma dúvida em termos evolucionários. O papel da mãe não seria muito passivo no processo, logo ela que teria interesse em ter o bebê e passar adiante seus genes?
"Eu diria que a mãe também está interessada em sobreviver para poder ter seus filhos", afirmou Mellor em entrevista à Folha.
"Se a outra opção evolutiva fosse atenuar o sistema imunológico da mãe na gestação, essa estratégia estaria colocando as fêmeas grávidas em desvantagem em termos de sobrevivência, já que as infecções e doenças teriam mais chance de serem bem-sucedidas durante a gravidez", acrescentou Mellor.
Nesse sentido, o método proposto por Mellor e colegas seria uma estratégia evolutivamente melhor, pois permitiria à mãe ter seu sistema de defesa eficiente ao mesmo tempo que carrega um feto potencialmente capaz de ativar essas defesas orgânicas.
"Um corolário interessante dessa estratégia, que pode ter relevância clínica, é que a distinção entre tecidos fetais e tecidos infectados pode ser mais complicada durante a gravidez. Isso pode significar que infecções no trato uterino podem aumentar a tendência da mãe de ter abortos espontâneos", diz Mellor.
A pesquisa, se confirmada, poderá no futuro ajudar mães com problemas de abortos sucessivos. Caso a origem do problema seja uma dificuldade do feto em produzir a IDO para se defender inibindo a ação das células-T, um medicamento substituto poderia ser desenvolvido.
O papel da IDO no sistema de defesa pode ser ainda mais complexo do que agora se mostrou. Pode ter ligação com as chamadas doenças auto-imunes, nas quais células do sistema de defesa atacam o próprio organismo.
"No momento, estamos focando nossos esforços de pesquisa em testes experimentais diretos da hipótese de que células expressando a enzima IDO têm um papel em desligar as células-T que promovem doenças auto-imunes", afirma Mellor.



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