São Paulo, sábado, 03 de dezembro de 2005

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CENTROS DE EXCELÊNCIA

Levantamento mostra que dois terços dos artigos brasileiros mais citados vêm das ciências da vida

Biomédicas dominam pesquisa de impacto

Gustavo Roth - 10.jan.2002/Folha Imagem
Cientista da Unesp de Jaboticabal clona genes em laboratório para estudar a doença do amarelinho, que ataca laranjais paulistas


MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A ciência brasileira nasceu com a prática da medicina e, naquilo que tem de melhor, continua umbilicalmente ligada à vida e à saúde. Em uma década, as áreas de medicina e cirurgia geraram 68 artigos em periódicos internacionais que obtiveram mais de cem citações. A pesquisa biomédica, outros 67. E a biologia, 29. As três juntas, ou o que se convencionou chamar de ciências da vida, perfazem 66% do total de 248 artigos com esse alto nível de impacto.
Esse instantâneo da supremacia biomédica surgiu de um levantamento realizado por Rogério Meneghini e Abel Packer, do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. O centro, estabelecido no Brasil em 1967 pela Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), é mais conhecido pelo seu antigo nome, Bireme (Biblioteca Regional de Medicina).
Tradicionalmente, a avaliação da qualidade de instituições e grupos de pesquisa, assim como a de pesquisadores, é feita por uma quantificação mais abrangente, o número de artigos em periódicos indexados -o rol de dezenas de milhares de revistas que são acompanhadas de maneira sistemática pela empresa americana ISI (Instituto para Informação Científica, na sigla em inglês). A base de dados do ISI compila nome e origem de milhões de cientistas do mundo todo, não só dos autores que assinam os trabalhos mas também dos que aparecem nas referências bibliográficas dos textos indexados.

Como achar a excelência
Se a análise tiver um pouco mais de sofisticação, leva-se em conta também o total de citações angariado por esses artigos, que dá uma medida de segunda ordem da qualidade da pesquisa em questão. Não basta conseguir ultrapassar a barreira editorial desses periódicos e conseguir ser publicado. Para ser citado por outros cientistas, um estudo precisa dar algum tipo de contribuição inédita, inovadora ou muito relevante para um determinado campo de investigação científica.
Segundo Meneghini, porém, seu objetivo ao realizar o levantamento não foi fazer avaliação institucional, mas identificar grupos de excelência. "A capacidade de julgar o padrão científico de uma nação é vital para o governo e o setor produtivo", afirmam os autores num artigo de 44 páginas sobre os resultados obtidos. "O que mais se almejou foi diagnosticar, nesse período, áreas em que tenha havido contribuições científicas brasileiras de impacto no contexto internacional, entender suas gêneses e repercussões."
A dupla escolheu empregar uma metodologia similar à adotada por David King num estudo de grande repercussão sobre a ciência mundial, publicado em 15 de julho de 2004 na revista "Nature": trabalhar somente com os artigos que tivessem obtido pelo menos uma centena de citações, segundo o controle do ISI. Dito de outro modo, a nata da nata da produção científica, aquela fatia finíssima em que toda a comunidade de pesquisa fica de olho.

Campeão tem 1.155 citações
No caso do estudo brasileiro, o período compreendido vai de 1994 a 2003. Nesse intervalo de uma década foi publicado um total de 109.916 artigos em que pelo menos um dos autores estava filiado a uma instituição sediada no Brasil. Desse universo de trabalhos, somente 248 (0,23%) obtiveram mais de cem citações em artigos posteriores.
O campeão, com 1.155 citações, é um artigo de 1995 sobre a associação do papilomavírus com câncer de colo de útero. Ele surgiu da colaboração de grupos de 24 países, entre eles um do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Meneghini e Packer fazem uma série de ressalvas sobre as limitações da metodologia que usaram. Por exemplo, o viés em favor de trabalhos mais antigos, que tiveram mais tempo para ganhar repercussão, ou a diluição do impacto por dezenas ou até centenas de autores. O setor das engenharias, por exemplo, sai relativamente prejudicado, pois é raro nele o artigo que obtém mais de cem citações.
O levantamento também desfavorece aquelas áreas -como humanidades e pesquisa agrícola- em que a tendência dos pesquisadores é citar e ser citado em periódicos brasileiros que não são indexados pelo ISI (só duas ou três dezenas fazem parte do seleto clube). Ocorre que Meneghini e Packer são também fundadores de uma iniciativa brasileira para criar uma alternativa à base de dados ISI, a SciELO (Scientific Electronic Library Online). Ela já conta com artigos e informações sistemáticas de mais de 300 periódicos, 140 deles do Brasil e o restante de dez países latino-americanos, Espanha e Portugal.

Surpresas e confirmações
Meneghini conta que o levantamento lhe trouxe algumas poucas surpresas, mas adicionou cifras frias a coisas que já se sabia. Por exemplo, o peso da colaboração internacional: só 39 (15,7%) dos 248 artigos tiveram autoria exclusivamente brasileira. Numa repescagem ainda mais restritiva, peneirando só os artigos que obtiveram mais de 250 citações, essa parcela cai ainda mais, para 10%.
Isso é o que qualquer pesquisador brasileiro já sabe: associar-se a um grupo, em particular americano (58 % dos artigos considerados), aumenta a chance de ser citado. O que pouca gente desconfia é que há grupos nacionais de pesquisa que conseguem publicar estudos de alto impacto sem o concurso de estrangeiros. Poucos: quatro, na lista dos 37 que amealharam 250 citações ou mais.
Chama a atenção que dois desses quatro artigos tenham sido produzidos por uma mesma equipe, o Grupo de Catálise do Instituto de Química da UFRGS de que participam Jairton Dupont e Roberto de Souza (os outros dois são da área médica da USP e da Unifesp). Dito de outro modo, de uma instituição marginal ao eixo Rio-São Paulo. E, ainda por cima, de uma área -a química- com desempenho modesto em matéria de excelência (só 23 artigos de alto impacto), ainda que estratégica para o desenvolvimento tecnológico de um país.
Com esses dois trabalhos sobre líquidos iônicos, o grupo coletou 623 citações. É com certeza um grupo que se destaca, mas não necessariamente ganha notoriedade além dos muros da academia. Dupont, por exemplo, só foi citado em poucas reportagens sobre nanotecnologia dos anos 2002 e 2003, em revistas como "Pesquisa Fapesp" e "ComCiência", de circulação limitada (e numa nota de 1999 desta Folha).

Desempenho do jornalismo
Essa ausência de repercussão social se explica, no entanto, pelo fato de que grupos como esses brilham em áreas muito técnicas e publicam em periódicos especializados, como "Polyhedron" e "Chemical Reviews". Jornalistas de ciência não acompanham tais publicações, somente aquelas de corte mais geral e de alto impacto, como "Nature" e "Science".
Apesar disso, Meneghini e Packer concluem em seu artigo que há "um percentual razoavelmente bom de coincidência (...) entre o que o jornalismo científico valoriza e a comunidade científica detecta". Na sua estimativa, cerca de 55% dos estudos e grupos de alto impacto chegam ao noticiário. O que quer também dizer que os jornalistas que cobrem ciência estão (estamos) deixando escapar 45% da melhor pesquisa que se produz no país.


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