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Apocalípticos e desintegrados
Livros recém-lançados
no Brasil ressuscitam
o pesadelo
do holocausto
nuclear
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Saíram no Brasil dois
livros espetaculares
sobre aquilo que talvez seja a maior
ameaça ao futuro da
humanidade. E não, não estamos falando do efeito estufa, e
sim da única invenção humana
capaz de pôr fim instantâneo à
civilização: a bomba atômica.
Quem acha que a ameaça de
um holocausto nuclear acabou
com a queda do Muro pode
considerar apenas um fato: em
meados deste ano, a IBM lançou o supercomputador mais
rápido do mundo, o RoadRunner -não para fazer pesquisas
científicas, mas para monitorar
o arsenal atômico dos EUA.
Melhor nem pensar na quantidade de ogivas cujo monitoramento demanda uma máquina
dessas, que roda quatrilhões de
operações por segundo.
O britânico Peter D. Smith
ressuscita o demônio atômico
no inquietante "Homens do
Fim do Mundo" (Cia das Letras, R$ 68, tradução de José
Viegas Filho). O calhamaço de
576 páginas faz uma historiografia das armas de destruição
em massa que é minuciosa
mas, ao mesmo tempo, prende
o leitor da primeira à última
página. Um "Harry Potter" do
apocalipse, se quiser.
A narrativa começa com a
descoberta do rádio por Marie
Curie, em 1903, passa pela invenção das armas químicas pelo prussiano Fritz Haber, na
Primeira Guerra, e termina
com a proposta aterradora -e
que ainda paira sobre o globo,
ao menos como possibilidade
teórica- da "bomba do fim do
mundo", um artefato termonuclear revestido de cobalto-60
cuja detonação espalharia uma
nuvem de poeira radioativa capaz de acabar com a vida.
A bomba de cobalto, imortalizada no imaginário popular
em 1964 pelo filme de humor
negro "Dr. Fantástico", de
Stanley Kubrick, foi delineada
teoricamente 14 anos antes pelo físico húngaro Leo Szilard.
Szilard é o personagem central da história de Smith. Primeiro, porque sem ele talvez
não houvesse bomba. Emigrado para os EUA com a ascensão
de Hitler, foi ele quem primeiro imaginou a reação em cadeia
da fissão do urânio e convenceu Albert Einstein a escrever a
famosa carta ao presidente
Franklin Roosevelt em 1939
pedindo que os EUA fizessem a
bomba antes dos nazistas.
Szilard também ilustra o que
talvez seja o maior diferencial
de "Homens do Fim do Mundo": a relação próxima e frequentemente premonitória da
ficção científica com a ciência.
O livro é repleto de referências
a histórias de ficção que antecipam o desenvolvimento da
ciência e seu uso na guerra.
Duas delas são de especial
importância na história da
bomba: "Fausto", de Goethe
-a metáfora do escambo da alma pelo conhecimento era tão
perfeita que os pioneiros da física nuclear encenaram uma
versão da peça em 1932, com
Niels Bohr no papel de Deus-
e "The World Set Free", de
H.G. Wells. Escrito em 1913, o
livro de Wells emprega pela
primeira vez a expressão
"bomba atômica", imaginando
uma arma composta por um
elemento radioativo cujo poder
de destruição seria tão imenso
que tornaria as guerras inviáveis.
Wells antecipa no mesmo livro o uso de aviões para lançar
bombas atômicas e a ameaça
representada por "qualquer
pequeno grupo de descontentes" que poderia carregar "numa mala de mão a energia potencial suficiente para destruir
metade de uma cidade".
Hiroshima e a guerra ao terror
previstos na mesma obra, escrita antes da Primeira Guerra.
(Numa passagem perturbadora, Smith leva o leitor a pensar
se o "Dr. Fantástico" de Stanley
Kubrick não estaria antecipando algo também.)
Smith argumenta que Szilard ficou impressionado com a
promessa do livro: a utopia baseada no poder do átomo. A física daria à humanidade uma
arma capaz de acabar com todas as guerras.
Foi sob essa promessa que
ele e outros físicos, como Bohr,
o italiano Enrico Fermi, os
húngaros John von Neumann e
Edward Teller e o alemão Hans
Bethe aceitaram trabalhar no
projeto Manhattan.
Fora da garrafa
Mas o plano dos físicos de
construir uma superarma pacificadora, como sabemos, deu
errado. Em seu arrebatamento
faustiano, quase nenhum deles
percebeu que, embora a física
tivesse conseguido controlar o
núcleo atômico, ela não controlara outra variável crucial: a cabeça dos políticos.
Já em 1946, Szilard, Einstein,
Robert Oppenheimer e outros
se deram conta da burrada. Como ninguém conseguiria "desinventar" a energia atômica,
os físicos trataram de propor
formas de controlá-la. Num relatório editado agora no Brasil,
"Um Mundo ou Nenhum" (Paz
e Terra, 230 págs., R$ 45, tradução de Patrícia Zimbres), 15 dos
pais da bomba alertam o mundo para o risco de uma corrida
armamentista nuclear.
É um livro atualíssimo. Aqui
vemos Harold Urey, descobridor da fusão nuclear, pedindo o
banimento da energia atômica
até que se desenvolvesse um
sistema de controle dos materiais físseis -e prevendo as restrições à liberdade dos cidadãos
americanos numa corrida armamentista. Vemos Louis Ridenour, que desenvolveu os radares na Segunda Guerra, dizendo que não há defesa possível contra ataques atômicos,
pois um erro de 10% já seria
uma catástrofe -um recado para os atuais proponentes do escudo antimísseis dos EUA.
E vemos Szilard em um flagrante tocante de ingenuidade,
propondo que potências atômicas acolhessem em seu território cientistas-inspetores das
nações inimigas.
Difícil não voltar à ficção e
lembrar a cena da comédia de
animação com marionetes
"Team America" (2004) na
qual o ditador norte-coreano
Kim Jong-il, o maluco atômico
da vez, exclama: "Inspecione isto, Hans Blix"! -e atira o inspetor de armas das Nações Unidas aos tubarões.
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