São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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+ Marcelo Leite

Ética e risco

Os cientistas precisam de um código de conduta? A questão entrou no radar da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que realiza uma série de consultas regionais pelo mundo sobre a possibilidade de produzir uma declaração com diretrizes para tanto. Terça e quarta-feiras passadas, por exemplo, realizou em Belo Horizonte a reunião da América Latina e do Caribe.
É uma discussão difícil, quando não confusa. O desvio começa pelo termo "cientista", entendido sempre como o pesquisador de ciências naturais. São os mais refratários a qualquer norma de conduta, que consideram ingerência externa, ou tentativa de restringir a liberdade de pesquisa. O nome de Galileu lhes aflora tão fácil quanto rapidamente aos lábios.


É lamentável, mas a ciência hoje parece atrair mais atenção por seus tropeços do que por suas conquistas


Não se trata de limitar a autonomia do pesquisador, claro. Mas só um cego deixaria de enxergar que a tecnociência -muito bem representada pelas ciências naturais experimentalistas, biotecnológicas à frente- vive uma crise de legitimidade. A confiança plena de que gozava, como arauto do progresso desde o Iluminismo, transformou-se em pó após Hiroxima e Tchernobil, ou após as promessas desmesuradas da genômica e a mais recente fraude das células-tronco.
Nada tem de trivial remediar essa crise de confiança sem abafar também a efervescência inovadora da ciência. Em boa hora formou-se, no encontro de Belo Horizonte, o consenso de que não caberia, por ora, caminhar na direção de um código de conduta. Seria só mais uma declaração de boas intenções a pavimentar o inferno da vida contemporânea.
Algum esforço coordenado para chamar a pesquisa científica hegemônica à responsabilidade, no entanto, é bem-vindo. É lamentável, até por ser uma injustiça parcial, mas a ciência hoje parece atrair mais atenção por seus tropeços do que por suas conquistas. Muita gente boa acredita que as práticas científicas atuais criam incentivos para desvios de conduta como a fraude, a fuga do controle social e a submissão de todas as linhas e estratégias de pesquisa ao imperativo da inovação de utilidade econômica.
O que falta à pesquisa cientifica (e não só a ela, mas isso são outros 500) é um compromisso com princípios éticos mais altos que os implícitos em seus próprios costumes, ainda que não incompatíveis com eles. É preciso que se pergunte aos cientistas: Quais valores a pesquisa deve perseguir, além dos valores cognitivos que obviamente não pode negligenciar? O que se propõe a fazer a mais, e não a menos?
Uma das fontes da crise de legitimidade da ciência está na percepção de que ela não serve mais, se é que algum dia serviu, somente aos interesses mais gerais da humanidade. A pesquisa científica nas ciências naturais é hoje encarada como uma atividade que atende mais aos interesses das corporações e menos ao bem comum -como um instrumento do capital e não da emancipação, para reviver palavras em desuso.
Pode-se discutir indefinidamente se essa visão é justa ou não (e sem dúvida ela se aplica à pesquisa avassalada pelas indústrias farmacêutica e biotecnológica), mas isso não vem ao caso agora. Ocorre que questões de legitimidade têm algo de profecias auto-realizáveis: se a comunidade científica insistir em que só ela é senhora de seus desígnios, eles cada vez mais deixarão de ser vistos como coincidentes com o interesse social geral.
Quem se arrisca a pagar para ver?

MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

O jornalista viajou a convite da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais, patrocinadora da reunião da Unesco.


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