São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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+ ciência
Documentos inéditos indicam que a Guerra do Paraguai causou a morte de 70% da população paraguaia
Nação dizimada

Ricardo Bonalume Neto
especial para a Folha

A recente descoberta de documentos inéditos de um censo populacional feito em 1870, e desaparecidos desde então, revelou que a Guerra do Paraguai pode ter causado a morte de 70% da população desse país.
Até agora não se tinha nenhuma prova concreta do real impacto na população paraguaia da também chamada Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) -que tem esse nome porque três países (Brasil, Argentina e Uruguai) lutaram contra o Paraguai.
Os pesquisadores Thomas L. Whigham, da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, e Barbara Potthast, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, publicaram um artigo com a descoberta no periódico especializado "Latin American Research Review".
Bem mais de um século do final da guerra ainda permanece um polêmico debate sobre qual o verdadeiro total de mortos na guerra. Mesmo hoje ainda existe uma falta de consenso até sobre qual era o tamanho da população paraguaia de antes da guerra.
Os dois autores acreditam que, antes do conflito, o Paraguai tinha entre 420 mil e 450 mil habitantes. Houve quem dissesse que a população poderia ser de mais de um milhão de pessoas; o militar prussiano Max Von Versen, que visitou o país durante a guerra, estimou o total em 900 mil. As estimativas de mortos até agora disponíveis variavam de 18% a 30%, com alguns historiadores aceitando mesmo 50% de vítimas. O artigo de Whigham e Potthast promete esquentar a discussão. O percentual de mortos na guerra não é uma mera curiosidade acadêmica. "Se as velhas histórias que alegavam perda de mais de 50% forem corretas, então a experiência paraguaia foi certamente notável na história da guerra moderna. Raramente uma sociedade tolerou tamanho nível de perdas antes de forçar um fim às hostilidades", escreveram os dois autores. A última grande polêmica sobre o tema da demografia histórica paraguaia tinha sido em 1990. Em artigo na revista "Hispanic American Historical Review", a pesquisadora Vera Blinn Reber argumentava que a perda de população não deveria ter passado de 18%. Assim como estudos anteriores da dupla Whigham-Potthast, ela se valeu de dados de recenseamentos de antes da guerra, baseados em informações de paróquias. A discussão estava esfriada por falta de novos dados. O Arquivo Nacional de Assunção contém pouco material para os anos posteriores a 1869. "O artigo de Whigham e Potthast é sólido e bem argumentando", diz o historiador Brasileiro Francisco Fernando Monteoliva Doratioto. Ele afirmou estar curioso para saber que resposta será dada por Blinn. Tanto Whigham como Doratioto estão escrevendo livros com novas informações sobre a Guerra do Paraguai, coletadas nos arquivos do país.

Falta de dados
A base para os cálculos da população em 1864, o começo da guerra, é um detalhado censo feito em 1846, considerado entre os documentos mais confiáveis sobre a população paraguaia no século passado, anteriormente estudado por outro pesquisador, John Hoyt Williams. O problema é que faltavam algumas paróquias nos documentos de 1846. O pai de Solano, o também ditador Carlos Antonio López, mencionou 83 paróquias em um discurso. Mas há registros de 11 outras não catalogadas. E, para complicar ainda mais a tarefa dos demógrafos, cada vila lista sua população de modo distinto. Havia uma paróquia que só contava brancos e índios, deixando negros de fora; outra fazia listas separadas de brancos e índios -e essa segunda lista não foi achada. Analisando os dados disponíveis, calculando índices de crescimento com base em recenseamentos do período colonial e extrapolando desses números, os dois autores chegaram a uma estimativa de 284.302 a 292.999 para o Paraguai em 1846 -comparados com os 238.862 que Williams tinha calculado. Esses números indicariam um total máximo de 456.979 paraguaios em 1864. Ironicamente, foi a queda de Stroessner, o ditador paraguaio que mais idolatrava López, que permitiu que novas pesquisas fossem feitas sobre o período da guerra. "Arquivos completamente desconhecidos e coleções obscuras começaram a aparecer", dizem os pesquisadores. Foi o caso dos arquivos do Ministério da Defesa Nacional, que deram um presente natalino a Whigham. Ele recebeu um cartão de Natal do major paraguaio Hugo Mendoza revelando o descobrimento do censo de 1870. O major antes trabalhara no Museu Histórico Militar e achou por acaso a documentação inédita ao ser transferido para o ministério. Levou dez meses para fazer cópias completas do censo. Os dois pesquisadores consideram o achado a "Pedra de Rosetta" da demografia histórica do Paraguai (essa pedra antiga, com um texto gravado em três alfabetos, foi descoberta em 1799 e permitiu a decifração dos hieróglifos egípcios). O censo foi feito pelo Governo Provisório que sucedeu a López. Apesar de já definido em 1869, ele só foi iniciado depois que os brasileiros encurralaram e mataram López em Cerro Corá em 1870. O governo precisava ter uma idéia da situação do país depois da guerra.

Terra cultivada
O censo informava não só a população, mas também quanto havia de terra cultivada em cada região.
Os números não necessariamente indicam que 70% da população morreu. Milhares de paraguaios foram forçados a abandonar suas casas pelas tropas de López, outros tantos se esconderam em regiões distantes, e ainda outros tantos estavam como prisioneiros de guerra no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
Mas a mortandade foi grande mesmo assim. Basta ver, lembram Whigham e Potthast, que em 1870 havia quatro ou cinco mais vezes mulheres do que homens na categoria "jovens" (algo entre 12 e 50 anos para os recenseadores).
Quando López estava sendo perseguido pelas tropas brasileiras em Cerro Corá, consta que teria dito "Morro com minha pátria". "Ele, de fato, chegou perto de levar o país junto com ele", concluem os autores do estudo.


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