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+ ciência
Documentos inéditos indicam que a Guerra do Paraguai causou a morte
de 70% da população paraguaia
Nação dizimada
Ricardo Bonalume Neto
especial para a Folha
A recente descoberta de documentos inéditos de
um censo populacional feito em 1870, e desaparecidos desde então, revelou que a Guerra do
Paraguai pode ter causado a morte de 70% da
população desse país.
Até agora não se tinha nenhuma prova concreta do
real impacto na população paraguaia da também chamada Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) -que
tem esse nome porque três países (Brasil, Argentina e
Uruguai) lutaram contra o Paraguai.
Os pesquisadores Thomas L. Whigham, da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, e Barbara Potthast, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, publicaram um artigo com a descoberta no periódico especializado "Latin American Research Review".
Bem mais de um século do final da guerra ainda permanece um polêmico debate sobre qual o verdadeiro
total de mortos na guerra. Mesmo hoje ainda existe
uma falta de consenso até sobre qual era o tamanho da
população paraguaia de antes da guerra.
Os dois autores acreditam que, antes do conflito, o Paraguai tinha entre 420 mil e 450 mil habitantes. Houve
quem dissesse que a população poderia ser de mais de
um milhão de pessoas; o militar prussiano Max Von
Versen, que visitou o país durante a guerra, estimou o
total em 900 mil.
As estimativas de mortos até agora disponíveis variavam de 18% a 30%, com alguns historiadores aceitando
mesmo 50% de vítimas. O artigo de Whigham e Potthast promete esquentar a discussão.
O percentual de mortos na guerra não é uma mera curiosidade acadêmica.
"Se as velhas histórias que alegavam perda de mais de
50% forem corretas, então a experiência paraguaia foi
certamente notável na história da guerra moderna. Raramente uma sociedade tolerou tamanho nível de perdas antes de forçar um fim às hostilidades", escreveram
os dois autores.
A última grande polêmica sobre o tema da demografia histórica paraguaia tinha sido em 1990. Em artigo na
revista "Hispanic American Historical Review", a pesquisadora Vera Blinn Reber argumentava que a perda
de população não deveria ter passado de 18%.
Assim como estudos anteriores da dupla Whigham-Potthast, ela se valeu de dados de recenseamentos de
antes da guerra, baseados em informações de paróquias. A discussão estava esfriada por falta de novos dados. O Arquivo Nacional de Assunção contém pouco
material para os anos posteriores a 1869.
"O artigo de Whigham e Potthast é sólido e bem argumentando", diz o historiador Brasileiro Francisco Fernando Monteoliva Doratioto. Ele afirmou estar curioso
para saber que resposta será dada por Blinn.
Tanto Whigham como Doratioto estão escrevendo livros com novas informações sobre a Guerra do Paraguai, coletadas nos arquivos do país.
Falta de dados
A base para os cálculos da população em 1864, o começo da guerra, é um detalhado censo
feito em 1846, considerado entre os documentos mais
confiáveis sobre a população paraguaia no século passado, anteriormente estudado por outro pesquisador,
John Hoyt Williams. O problema é que faltavam algumas paróquias nos documentos de 1846.
O pai de Solano, o também ditador Carlos Antonio
López, mencionou 83 paróquias em um discurso. Mas
há registros de 11 outras não catalogadas.
E, para complicar ainda mais a tarefa dos demógrafos,
cada vila lista sua população de modo distinto. Havia
uma paróquia que só contava brancos e índios, deixando negros de fora; outra fazia listas separadas de brancos e índios -e essa segunda lista não foi achada.
Analisando os dados disponíveis, calculando índices
de crescimento com base em recenseamentos do período colonial e extrapolando desses números, os dois autores chegaram a uma estimativa de 284.302 a 292.999
para o Paraguai em 1846 -comparados com os 238.862
que Williams tinha calculado.
Esses números indicariam um total máximo de
456.979 paraguaios em 1864. Ironicamente, foi a queda
de Stroessner, o ditador paraguaio que mais idolatrava
López, que permitiu que novas pesquisas fossem feitas
sobre o período da guerra.
"Arquivos completamente desconhecidos e coleções
obscuras começaram a aparecer", dizem os pesquisadores. Foi o caso dos arquivos do Ministério da Defesa
Nacional, que deram um presente natalino a Whigham.
Ele recebeu um cartão de Natal do major paraguaio Hugo Mendoza revelando o descobrimento do censo de
1870. O major antes trabalhara no Museu Histórico Militar e achou por acaso a documentação inédita ao ser
transferido para o ministério.
Levou dez meses para fazer cópias completas do censo. Os dois pesquisadores consideram o achado a "Pedra de Rosetta" da demografia histórica do Paraguai
(essa pedra antiga, com um texto gravado em três alfabetos, foi descoberta em 1799 e permitiu a decifração
dos hieróglifos egípcios).
O censo foi feito pelo Governo Provisório que sucedeu a López. Apesar de já definido em 1869, ele só foi
iniciado depois que os brasileiros encurralaram e mataram López em Cerro Corá em 1870. O governo precisava ter uma idéia da situação do país depois da guerra.
Terra cultivada
O censo informava não só a população, mas também quanto havia de terra cultivada em
cada região.
Os números não necessariamente indicam que 70%
da população morreu. Milhares de paraguaios foram
forçados a abandonar suas casas pelas tropas de López,
outros tantos se esconderam em regiões distantes, e
ainda outros tantos estavam como prisioneiros de guerra no Brasil, no Uruguai e na Argentina.
Mas a mortandade foi grande mesmo assim. Basta
ver, lembram Whigham e Potthast, que em 1870 havia
quatro ou cinco mais vezes mulheres do que homens na
categoria "jovens" (algo entre 12 e 50 anos para os recenseadores).
Quando López estava sendo perseguido pelas tropas
brasileiras em Cerro Corá, consta que teria dito "Morro
com minha pátria". "Ele, de fato, chegou perto de levar
o país junto com ele", concluem os autores do estudo.
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