São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2008

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comentário

Debate público beira o pueril

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Qualquer que seja decisão do STF sobre a constitucionalidade de usar embriões humanos em pesquisa, uma constatação já se pode fazer: a discussão pública teve nível baixo. Quase pueril.
Nem vale a pena contemplar aqui a chicana católica. A confusão deliberada entre vida humana (biológica) e pessoa humana (jurídica) não mereceria comentário, mas chegou ao Supremo porque um procurador-geral da República cedeu à tentação dogmática e pecou contra o 1º mandamento da República, a separação entre Estado e igreja
Como não faltam críticos da irracionalidade carola, é preciso focalizar os absurdos dos que se apresentam como arautos da Razão. A qualidade de certos argumentos desse lado -o correto- é sofrível.
Em alguns casos trata-se de simples erros factuais. Na revista "Veja", a repórter pergunta a Mayana Zatz, da USP, sobre a proibição no Brasil da pesquisa com células-tronco embrionárias. Zatz responde: "Essa proibição é absurda". O problema é que a pesquisa não está proibida no Brasil. Ao contrário, ela passou a ser permitida em 2005, embora com restrições, com a Lei de Biossegurança. Autorização cuja constitucionalidade é agora julgada.
Se ainda não há terapias com células embrionárias, não é só porque as pesquisas são recentes e foram prejudicadas no Brasil pela autorização legal tardia, como deu a entender Rosalia Mendez-Otero, da UFRJ, na Folha. Vários países permitem a pesquisa. Nenhum chegou a um tratamento eficaz.
Talvez um dia se consiga controlar o comportamento errático das células-tronco embrionárias e regenerar músculos ou nervos danificados. Muitos cadeirantes foram levados ao Congresso e ao Supremo por altruísmo, pois não irão beneficiar-se desses estudos. Usá-los para emocionalizar o debate, porém, é tão pouco recomendável quanto equiparar destruição de blastocistos com uma centena de células ao assassinato de criancinhas.
Mais duro de ouvir da boca de uma cientista é que, se destruir blastocistos é assassinato, masturbação masculina equivaleria a genocídio. Foi dito na Rádio CBN. O espanto apagou da memória o nome da especialista.
Ora, a noção católica que se combate é a de que a vida (da pessoa) humana se inicie com a fecundação. Espermatozóides e óvulos são anteriores a ela.
Esse tipo de argumento, dado à derrisão, só ocorre àqueles inebriados pela fé na Razão. O STF fará bem em desconsiderar tais abortos da retórica e chancelar a liberdade de pesquisa pelo que ela traz de busca e promessa.


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