UOL


São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

Texto Anterior | Índice

Ciência em Dia

No País dos Maradonas

Marcelo Leite
editor de Ciência

O Brasil já foi a Terra dos Papagaios, e seu maior rio, o das Amazonas. Agora, depois da medida provisória que liberou -mais uma vez- a soja transgênica da Monsanto, o presidente Lula deveria enviar ao Congresso uma outra MP alterando o nome da nação para País dos Maradonas, depois do golpe de mão com que mandou às favas não os escrúpulos, ou as regras do futebol (como fez o craque argentino nas quartas-de-final da Copa de 1986, contra a Inglaterra), mas uma decisão judicial em vigor.
Não seria providência capaz de causar grande escândalo, depois da iniciativa de alterar a ordem secular de precedência dos ministérios federais, em que o mais antigo, da Justiça, cedeu lugar para o mais poderoso do momento, Casa Civil. (Coincidentemente, ou não, desse ministro, José Dirceu, era a assinatura que aparecia no texto errado da MP publicado no "Diário Oficial da União", ao lado da do presidente em exercício, José Alencar, mas desaparecida da versão republicada na mesma sexta-feira, 26.) É sintomático e coerente que Dirceu se ache, agora, antes e acima da Justiça.
O novo nome para o país seria tanto mais apropriado porque a tal soja RR -Roundup Ready, resistente ao herbicida Roundup, ou glifosato- também é conhecida como "maradona". Afinal, 70% da soja plantada no Sul é ilegal, contrabandeada que foi da Argentina. Os schumpeterianos de meia-tigela devem achar que é demonstração de destruição criadora, de "empreendedorismo".
Tempos bicudos, estes.
Ilegalidade por ilegalidade, o governo federal cedeu de novo à chantagem da bancada gaúcha, para assegurar trânsito desimpedido às reformas lulo-fernandinas. É cedo para dizer se os neo-neoliberais do PT compõem nova classe social, como diz o sociólogo Francisco de Oliveira, mas é tarde para descobrir que seu comitê central já traçou uma linha justa.
Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente, coadjuvou o jogo de enfeitar a MP com uma penca de adereços tão verdes quanto impraticáveis. Acredite quem quiser que só plantarão soja maradona aqueles que já a tinham contrabandeado antes, ou que a RR que não for vendida até dezembro de 2004 será incinerada, ou que haverá controle dos termos de responsabilidade que a MP manda agricultores assinarem -para não falar da gracinha que é proibir o plantio em... terras indígenas.
Ninguém precisa perder o sono, porém, com a disseminação da soja RR, pois ela já é ingerida há tempos e não há razão para crer que tenha impacto ambiental no Brasil. Não há parentes silvestres por aqui para contaminação com pólen transgênico, que de resto costuma fertilizar só o pé de soja de onde saiu. José Alencar pode experimentar e repetir a soja maradona, sem grandes problemas.
A pergunta que fica sem resposta: não havendo risco para o ambiente, por que a Monsanto e a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) lutam há cinco anos na Justiça para derrubar a exigência de um estudo de impacto ambiental? Talvez para reter o monopólio da decisão, mantendo afastados pesquisadores de outras áreas, pois o consenso pró-biotecnologia só é pleno entre biotecnólogos (assim como homeopatas são a favor da homeopatia).
Outra possibilidade: não deixar que se abra um precedente de controle social e facilitar a passagem, pela porteira aberta, de transgênicos mais problemáticos, como arroz e milho. No primeiro caso, o problema se chama arroz vermelho. No segundo, borboletas. Com a palavra, ecólogos, agrônomos e entomólogos.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


Texto Anterior: Micro/Macro: Sobre gotas e esferas
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.