São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

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GENÉTICA

Evolução manteve 2,5% de sequências sem genes no homem e no camundongo, que também devem ter função

Genoma de roedor reabilita DNA-"lixo"

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

Há muito mais coisas entre roedores e homens do que tem sonhado a genomania. Com a publicação do rascunho do DNA do camundongo, hoje, na revista científica "Nature", fica evidente que genomas são bem mais complexos do que um livro de receitas, e isso graças a uma grande surpresa: 2,5% da sequência é partilhada pelas duas espécies, embora não contenham genes.
Na forma tradicional do raciocínio genético, DNA que não é gene não tem função, e é por isso chamado de DNA-lixo ("junk DNA"). Os 2,5% de "tranqueira" conservados agora descobertos em realidade estão dizendo que imprestável, mesmo, é a noção de "DNA-lixo". Por uma simples razão: se foi mantido pela evolução por milhões de anos, esse DNA deve servir para alguma coisa -a ciência é que ainda não foi capaz de descobrir para quê.
Outros cerca de 3% que compõem os genes em cada genoma são quase idênticos (99%) entre as duas espécies. Pelo menos 80% dos dois genomas podem ser agrupados em longas sequências similares, herdadas pelas duas espécies de um ancestral comum que viveu há 75 milhões de anos. O número de genes é similar, cerca de 30 mil.
A finalização do sequenciamento (soletração) do genoma do camundongo (Mus musculus) já havia sido anunciada em maio pelo consórcio de sequenciamento formado pelo Centro Whitehead de Pesquisa Genômica do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA), pelo Centro de Sequenciamento do Genoma da Universidade Washington (Missouri, EUA) e pelo Instituto Sanger do Wellcome Trust (Reino Unido). No mundo científico, porém, uma pesquisa só se torna realidade quando é publicada, o que ocorre agora na revista "Nature" (www.nature.com), em grande estilo (mais de 70 págs.).
Um ano antes, a empresa Celera Genomics havia terminado um rascunho do genoma do camundongo ainda mais completo (99% do DNA, contra 96% do consórcio público), mas seu conteúdo só estava disponível mediante pagamento. A sequência do roedor feita pelo consórcio pode ser obtida, gratuita e eletronicamente, por qualquer pesquisador.

Cromossomo 21
A parcela de 2,5% de sequências não-gênicas foi estimada num dos vários artigos na "Nature" de hoje, de Stylianos Antonarakis, da Universidade de Genebra, e outros pesquisadores suíços. Eles se basearam num estudo detalhado do cromossomo 21 do homem, mais conhecido por seu envolvimento na síndrome de Down (cujos portadores têm 3 e não 2 cópias do 21), e em sua comparação com as sequências equivalentes no camundongo.
"Essa observação tem implicações profundas no estudo dos genomas e na identificação de mutações envolvidas em moléstias humanas", diz um comunicado da Universidade de Genebra.
"O papel exato desses elementos genômicos não-gênicos, mas importantes, é desconhecido, mas provavelmente regulam a função de genes (quando, onde e como um gene funciona) ou fornecem a necessária estrutura dos cromossomos, de modo que eles funcionem apropriadamente."
Isso quer dizer que, ao concentrar toda sua atenção nos genes, os cientistas podem estar deixando escapar alterações de DNA que também podem exercer alguma influência no desenvolvimento de doenças -como o câncer, muitas vezes associado com anomalias cromossômicas.
"Há muito mais coisas que importam no genoma humano do que pensávamos", disse Eric Lander, do Instituto Whitehead. Ele é o autor principal do artigo central na "Nature", que se estende por 43 páginas e conta com 222 assinaturas. "Ainda precisamos de ajuda para interpretar esse livro da vida", disse Kerstin Lindblad-Toh, também do Whitehead.
Cientistas dizem acreditar que mais de 90% dos genes envolvidos em doenças sejam idênticos em roedores e humanos, o que acentua a importância do camundongo como animal-modelo da pesquisa biomédica -uma história de sucesso iniciada em 1909, quando roedores criados como animais decorativos ("fancy mice") foram adotados por laboratórios de genética. Hoje, cerca de 25 milhões de camundongos são consumidos por ano nos laboratórios de pesquisa, para estudo de doenças como câncer, diabetes e hipertensão.
Estima-se que a versão final do genoma do camundongo fique pronta em 2 a 3 anos. A do homem deve sair em abril próximo.


Com agências internacionais


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