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USP realiza expedição a Lagoa Santa em homenagem ao bicentenário
do naturalista dinamarquês, considerado o pai da paleontologia brasileira
NA TRILHA DE PETER LUND
Reprodução
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Desenho do dinamarquês Peter Brandt mostra lagoa do Sumidouro, em Lagoa Santa, no século 19 |
Luís Beethoven Piló
Walter Neves
especial para a Folha
Há 200 anos nascia em Copenhague, Dinamarca, o naturalista Peter Wilhelm Lund (1801-1880), considerado o pai da paleontologia brasileira. Lund descobriu milhares de fósseis de
animais extintos nas cavernas da região de Lagoa Santa,
em Minas Gerais. Em 1844, apresentou duas hipóteses
ousadas para a época: a contemporaneidade do homem
americano com os grandes mamíferos extintos e um
modelo para explicar o povoamento original do continente que só começou a se confirmar nos últimos anos.
Em homenagem ao seu bicentenário, pesquisadores
do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da
USP realizaram em setembro passado, com financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo), uma expedição à gruta do Sumidouro, onde Lund enfrentou uma grande crise de paradigma científico e deu o primeiro grande golpe, em termos factuais, no criacionismo catastrofista de Georges
Cuvier, seu mentor.
Em 1825, Peter Lund desembarcou pela primeira vez
no Rio de Janeiro, para enviar coleções de plantas e animais ao Museu Real de Copenhague. O retorno à Europa, em 1829, proporcionou ao dinamarquês o convívio
com célebres naturalistas europeus, como Alexander
von Humboldt (1769-1859) e Georges Cuvier (1769-1832). O princípio do catastrofismo de Cuvier, segundo
o qual as regiões destruídas por catástrofes no passado
foram repovoadas por Deus por organismos mais modernos -o homem só teria surgido na última dessas
criações, descrita no livro bíblico do Gênese- orientaria grande parte dos trabalhos de Peter Lund.
O regresso ao Brasil se deu em 1833. No ano seguinte,
Lund alcançou Minas Gerais e, visitando cavernas na
região de Curvelo, defrontou-se com o potencial de pesquisas dos ossos fósseis ali depositados e revolvidos pela extração do salitre. A partir de 1835, Lund fixou residência em Lagoa Santa e iniciou suas pesquisas sobre as
ossadas encontradas nas cavernas da região.
Peter Lund reconheceu mais de 800 sítios paleontológicos, onde foram coletados mais de 12 mil fragmentos
ósseos de mamíferos, pertencentes a cem gêneros e 149
espécies fósseis, sendo 19 gêneros e 32 espécies extintos.
Ossos humanos, segundo o próprio Lund, foram encontrados em seis sítios. Um deles, a gruta do Sumidouro, forneceu vestígios que mudariam o curso da pesquisa de Lund -e a própria pré-história americana.
A descoberta do Sumidouro Localizada no sopé
de um maciço calcário que margeia uma lagoa, a gruta
fica parcialmente submersa durante a maior parte do
ano, o que impossibilita a exploração de suas câmaras
internas. No inverno de 1843, aproveitando uma estiagem que causou o esvaziamento da lagoa, Lund entrou
na gruta e encontrou um verdadeiro baú de ossos.
Ele sabia que a gruta do Sumidouro poderia lhe fornecer dados importantes sobre as idades relativas dos fósseis. Três anos antes ele já obtivera ali restos de animais
e os dois primeiros esqueletos humanos de suas pesquisas, que apresentavam alto grau de fossilização e "extraordinária idade". Mas, naquele momento, Lund havia descartado qualquer possibilidade de interpretação
das idades relativas desses restos misturados, já que os
mesmos não se encontravam em seus estratos (camadas de solo) originais.
As escavações no Sumidouro duraram 13 dias, durante os quais foram descobertos, segundo Lund, "pelo
menos 30 indivíduos humanos de várias idades". A
maioria dos ossos estava fraturada e espalhada. O naturalista reconhece, no entanto, que "uma parte desses
ossos tinha sido encontrada na posição natural, indicando que entraram na caverna ainda envolvidos de
suas partes macias".
Lund, em seguida, elabora uma ampla discussão sobre os processos cíclicos de preenchimento e esvaziamento dos sedimentos na caverna. E chega a uma interpretação decisiva. Todos os sedimentos, mesmo os
mais agitados pelas águas, eram restos do velho aterro
original da gruta. Os diversos tipos de sedimento achados seriam consequência dos graus diferenciados de alteração da argila, causados pela ação da água.
Analisando um tipo de argila cinza-amarelada com
manchas pretas existente nos depósitos escavados,
Lund arrematou: "Foi nessa mistura de espécies extintas e recentes que os restos misteriosos de cavalos e seres humanos apareceram, e todos em estado de decomposição precisamente igual, de modo que não há dúvidas de que todos os indivíduos, cujos restos aqui foram
enterrados juntos, também viviam na mesma época."
Era a primeira vez que alguém propunha a coexistência de seres humanos -fruto da última criação divina,
segundo Cuvier- com as bestas extintas da Idade do Gelo (como preguiças gigantes, cavalos e tigres dente-de-sabre). A percepção dessa relação entre a fauna extinta e a atual levaria Lund a direcionar seu pensamento
no caminho contrário ao do catastrofismo.
Sumidouro revisitado Aproveitando a longa estiagem que atinge a região de Lagoa Santa, iniciamos nossa campanha com uma pequena equipe de prospecção
visando à localização da entrada da gruta e à avaliação
das condições de exploração. Após algumas investidas
infrutíferas, conseguimos finalmente localizar a entrada da gruta e constatar que o nível das lagoas existentes
na caverna se encontrava muito baixo, o que possibilitava nossa visita em todos os condutos subterrâneos. A
lagoa do Sumidouro só atingira o rebaixamento do nível de água atual no ano de 1978. Outro fato animador
foi a identificação de dois ossos longos humanos em
graus diferenciados de fossilização.
Na primeira semana de setembro iluminamos as
principais câmaras da caverna e iniciamos nossa visita à
gruta. Para nós foi uma experiência memorável, já que
pudemos identificar, com certa rapidez, os dois principais locais das escavações de Lund. Isso foi possível graças ao detalhado relatório que o naturalista dinamarquês publicou. Tínhamos a pretensão de compreender
os depósitos descritos por Lund, encontrar vestígios de
ossos humanos para datações e analisar como se deu a
entrada dos ossos humanos na caverna. Após uma rápida visita em vários condutos subterrâneos, ossos humanos começaram a ser identificados superficialmente ou
parcialmente enterrados no primeiro salão.
Além de propor a contemporaneidade entre homens
pré-históricos e a fauna extinta, Lund foi o primeiro a
perceber, a partir dos ossos encontrados no Sumidouro, algo "estranho" na morfologia craniana da população humana pré-histórica de Lagoa Santa. E isso passou
despercebido, muito provavelmente, porque tais observações foram publicadas em português, no Brasil.
Em uma carta de 12 de janeiro de 1842 ao Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Lund referiu-se, pela
primeira vez, ao fato de essa população humana ter crânios estreitos e grande prognatismo facial (projeção da
mandíbula para a frente), diferentemente das populações "mongólicas", de onde, em princípio, a "raça americana" teria se originado. Assim, sugeriu, usando a lógica de seu tempo, que a melhor maneira de explicar essa diferença era assumir que teria havido na "raça americana" uma degeneração a partir da "raça mongólica".
Após seus estudos no Sumidouro, Lund ficou convencido da contemporaneidade entre o homem e a megafauna (os mamíferos extintos) e de uma grande antiguidade da presença do homem na América. Em carta
de 21 de Abril de 1844, propôs um novo modelo para explicar a "estranha" morfologia da população de Lagoa
Santa. Evitando a idéia de uma degeneração, Lund lançou a hipótese de que o homem teria surgido primeiro
na América e depois migrado para a Ásia, onde teria dado origem às populações mongólicas.
Nos dias que se seguiram à nossa primeira visita, coletamos alguns ossos para datações pela técnica do carbono-14, não disponível no século 19. As escavações realizadas por Lund e, depois dele, pelo arqueólogo amador
Hélio Diniz, em 1956, certamente tinham alterado de
forma expressiva os sedimentos do piso da caverna. Selecionamos, então, alguns estratos para análise e coleta
de material, visando a reconstituição dos sedimentos
descritos por Lund. Paralelamente, foi elaborada uma
topografia detalhada da caverna, com o objetivo de possibilitar uma discussão sobre como os cadáveres humanos foram parar ali dentro. Após cinco dias de intensos
trabalhos encerramos nossas pesquisas. Em nossa derradeira saída da gruta, uma outra surpresa. Foram
achados, em uma valeta a céu aberto de 60 centímetros
de profundidade e a 25 metros da frente principal da caverna, várias lascas e artefatos pré-históricos. Poderia
estar ali a compreensão de como os cadáveres humanos
entraram na caverna. Estava estabelecida nossa próxima investigação.
No caminho certo As duas principais hipóteses de
Lund foram resolvidas nas últimas décadas a seu favor.
Hoje sabemos que, de fato, os primeiros americanos
conviveram com os grandes mamíferos extintos, tendo
tido com eles relações diversas. Sabemos, também, que
nenhuma forma de criacionismo pode ser aceita para
explicar a origem e a transformação da vida no planeta.
Há dez anos, um de nós (Walter Neves), utilizando
ferramentas quantitativas, mostrou que os crânios de
Sumidouro, desenterrados por Lund, não apresentam
relação morfológica com os grupos mongolóides, que o
naturalista dinamarquês chamava de "raça mongólica". Na verdade, eles apresentam semelhanças com a
morfologia craniana dos australianos e dos africanos
atuais. Entre outras coisas, por serem estreitos e longos
e por apresentarem prognatismo facial, como Lund já
havia notado. Ninguém deu muita importância.
As coisas só se modificaram um pouco nos últimos
anos, graças aos estudos efetuados no crânio de "Luzia", esqueleto descoberto também na região de Lagoa
Santa, nos anos 1970, datada entre 11.000 e 11.500 anos.
Por sua antiguidade e por também não apresentar morfologia mongolóide, "Luzia" chamou a atenção da comunidade científica internacional.
Assim, a peculiaridade da morfologia craniana da população de Lagoa Santa, que Lund percebeu de cara, no
século 19, não precisa ser explicada nem em termos de
"degeneração", nem a partir da inversão geográfica da
origem do homem moderno no planeta. Basta para explicá-la aceitar aquilo que nos parece mais óbvio hoje
em dia, o fato de que entraram na América populações
humanas com morfologias cranianas muito extremas.
É possível que morfologias intermediárias possam também ter entrado, ou mesmo tenham sido produzidas in
situ no continente americano, mas essa possibilidade
ainda está sob investigação.
Luís Beethoven Piló e Walter Neves são antropólogos físicos do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da
USP
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