|
Próximo Texto | Índice
CIÊNCIA
De médico a paciente de Aids
Em ``Possível Milagre'', Mahlon Johnson relata
sua luta para sobreviver
|
ANDREA FORNES
Editora de Exterior e Ciência
O médico Mahlon Johnson convivia com o HIV muitos anos antes
de ser infectado pelo vírus causador da Aids. Como neuropatologista, ele se especializou em biópsias e autópsias de pacientes com
síndrome de deficiência imunológica adquirida.
Numa noite chuvosa de setembro de 1992, em Nashville (Tennessee, EUA), um acidente ocorrido enquanto autopsiava o cadáver
de um paciente terminal de Aids
mudou sua vida aos 38 anos.
"Até esse momento, tudo, apesar de delicado e perigoso, tinha sido coisa de rotina. Mas então, numa fração de segundo, meus dedos
escorregaram e minha mão voou
na direção do bisturi ensanguentado. De repente senti uma dor aguda subindo pelo braço. A julgar pela dor, o corte era profundo, e por
um segundo fiquei ali, parado, de
boca aberta, diante do que tinha
feito. Vi meu próprio sangue jorrando e preenchendo cada camada
de luva, agora cheia de sangue com
Aids. Senti as mãos pegajosas e
molhadas e, em pânico, entendi
que, através do rasgo da luva, um
sangue encontrava o outro na minha mão ferida."
O relato de como passou de médico a paciente está no livro "Possível Milagre", lançado pela Companhia das Letras (316 págs., R$
25). Às vésperas de completar 43
anos, Johnson diz que sempre foi
um lutador. Começou a lutar pela
sobrevivência ao nascer, seis semanas antes do previsto e pesando
apenas dois quilos.
O "milagre" que o fez resistir no
passado parece estar se repetindo
agora. Após diversos exames que
apontavam resultado negativo, ele
foi diagnosticado soropositivo em
1993. Com um tratamento agressivo e precoce, que ele mesmo estabeleceu, conseguiu controlar a
doença, que já infectou 22 milhões
de pessoas no mundo.
O último exame feito por Johnson mostrou uma contagem de
pouco mais de 1.300 células CD4
por milímetro cúbico de sangue. A
contagem das células CD4 do sistema imunológico, um dos principais alvos do HIV, é uma das formas de avaliar o estágio da doença.
Contagens de CD4 menores do
que 200 são suficientes para diagnosticar a Aids num paciente.
"Era como se a doença lhe tivesse dado uma razão de viver que antes faltava", escreveu o médico
Abraham Verghese no prefácio do
livro. Ele continua o mesmo
"workaholic" de sempre no Centro Médico da Universidade do
Tennessee, em Knoxville, e na Escola Médica da Universidade Vanderbilt, mas trabalha principalmente para combater e ajudar outras pessoas a combater a Aids.
"Espero que o meu livro possa
ser útil para as pessoas no Brasil.
Nessa nova era da Aids, a maioria
das pessoas que está sendo contaminada é de mulheres, que representam entre 25% e 30% dos novos
casos, e hispânicos. São as vítimas
inocentes que precisam ser alertadas sobre as novas opções de tratamento que podem dar esperança.
Passo a maior parte do tempo tentando ajudar mulheres soropositivas", disse à Folha por telefone. A
seguir, os principais trechos.
Folha - O lançamento de seu livro
deve ter abalado a comunidade
médica. Qual foi a reação a ele?
Mahlon Johnson - Não posso
falar por todos os médicos, mas
muitos ficaram satisfeitos porque
o livro é equilibrado. Fui bastante
cuidadoso ao mostrar que há razão
para esperança, o que muitos dos
médicos famosos que tratam de
pacientes com Aids agora estão
anunciando. Mas evitei dar qualquer sinal para a cura da doença.
Folha - Há, nos EUA, outros casos
de médicos que foram infectados
no trabalho? Segundo o seu livro,
"só 0,37% das pessoas que trabalha com saúde e são acidentadas,
uma em cada 270 pessoas, era infectada pelo HIV".
Johnson - Há muitos médicos e
enfermeiras que se contaminaram, e alguns deles estão bastante
doentes. Em Nashville, foram registrados vários casos. A diferença
é que comecei cedo um tratamento
agressivo, combinando imunoterapia e drogas antivirais, o que parece ter funcionado bem. Uma das
edições do "New England Journal
of Medicine" do mês de março
traz o relato de uma profissional
da área de saúde que foi contaminada com HIV e hepatite C. Ela
morreu em 28 meses.
Folha - Por que tão rápido?
Johnson - Há estudos mostrando que profissionais da área de
saúde contaminados pelo HIV têm
mais dificuldade de se recuperar
porque se contaminaram com
sangue de alguém que apresenta a
doença em estágio avançado ou
que acabou de morrer de Aids.
Nesse ponto, os níveis de HIV no
corpo e nos tecidos são extremamente altos e os vírus, mutantes,
porque o paciente já se submeteu
ao tratamento com vários tipos de
drogas contra as quais o vírus
criou resistência.
Folha - Nos EUA, um médico que
se contaminou pode trabalhar?
Johnson - Essa é uma questão
que está sendo discutida. Mas já
existem algumas recomendações.
No caso de um clínico geral que
não expõe seus pacientes a procedimentos de risco como, por
exemplo, uma cirurgia, não há
problema. No meu caso, como patologista, passo a maior parte do
tempo no microscópio. Praticamente não vejo pacientes, exceto
aqueles nos quais faço autópsia.
Eles são um grande risco para
mim, mas eu não represento risco
para eles porque eles estão mortos.
Folha - Antes de iniciar a autópsia que o contaminou, você reclamou sobre a falta de luvas de Kevlar. Teve de usar dois pares de luvas de látex. Os hospitais já contam com essas luvas, mais apropriadas para evitar acidentes?
Johnson - Naquela época, o
Centro de Controle de Doenças Infecciosas recomendava o uso de
dois pares de luvas de látex. A melhor forma de proteção eram as luvas de Kevlar, uma inovação que
algumas pessoas estavam usando,
mas que nós não tínhamos.
Folha - Seria possível processar o
hospital por falhar ao não garantir
segurança no trabalho?
Johnson - Faz parte do meu trabalho ficar exposto ao perigo.
Folha - Apesar de saber dos riscos, seria natural pensar que tal fatalidade jamais aconteceria com
você. Em algum momento passou
pela sua cabeça que um dia você
poderia ser infectado?
Johnson - Quando fui selecionado para participar desse estudo
(sobre danos provocados pela
Aids no cérebro) fazendo autópsias, sabia que haveria um risco,
ou seja, que eu poderia ser contaminado. Enfermeiras que trabalham em pronto-socorros e cirurgiões sabem que há sempre uma
chance de isso ocorrer. Por ser experiente e cuidadoso, achei que
nada aconteceria.
Folha - Você teve de lidar com
preconceito no trabalho?
Johnson - Não foi tão ruim para
mim como deve ser para as mulheres no Brasil. A maioria dos meus
colegas é instruída. Eles ficaram
horrorizados que isso tivesse se
passado comigo, mas não era como "Vicky" (personagem do livro), que vive nas montanhas, onde as pessoas temem os soropositivos a ponto de não quererem chegar perto nem conversar. Eles
agem como se tivesse algo errado.
Folha - Você acha que o seu livro
pode ajudar os médicos?
Johnson - É importante que os
patologistas saibam os riscos de
uma autópsia. Estou certo que depois de tomarem conhecimento
do meu caso, que também foi divulgado em revistas especializadas, os médicos passaram a ser
mais cuidadosos. Provavelmente
reavaliaram o que estão fazendo e
passaram a exigir melhores condições de trabalho, como luvas de
Kevlar... Espero que sim.
Hospitais em Nova York ou San
Francisco sempre contaram com
um bom equipamento porque já
estavam lidando com muitos pacientes de Aids, o que não ocorria
nos pequenos hospitais.
Folha - Você continua trabalhando normalmente?
Johnson - Trabalho o tempo todo. Nunca deixei de trabalhar por
motivo de saúde. Nos últimos
anos, tenho trabalhado mais do
que nunca -nas madrugadas, nos
finais de semana, nos feriados e
nas férias trabalhei no livro, o que
me deixou ainda mais ocupado.
Estou perfeitamente saudável.
Folha - Como está a sua saúde?
Johnson - Absolutamente boa.
A contagem de CD4, em fevereiro,
deu 1.900, número bastante alto, o
que me fez reduzir as doses de IL2
(substância produzida naturalmente pelo corpo e que estimula o
crescimento de células do sistema
imune). A última contagem, em
março, deu 1.331. Vou continuar
reduzindo o IL2 porque a contagem está acima do desejado.
Folha - O que você toma?
Johnson - IL2, dois inibidores
de protease e vários antivirais. (No
livro, Johnson diz que tomava, no
final do ano passado, 28 pílulas
por dia -seis ritonavir, três saquinavir, duas cápsulas de AZT e uma
de 3TC no café da manhã e no jantar; mais uma cápsula de AZT, um
grama de vitamina C, complexo B
e betacaroteno à noite).
Folha - O que você fez é o que
David Ho está tentando provar
agora ser a receita mais eficaz, ou
seja, tratamento rigoroso logo
após a contaminação?
Johnson - É muito gratificante.
Agora acredita-se que é melhor começar com um tratamento agressivo desde cedo, mas quando fui
contaminado era difícil convencer
os outros porque estudos mostravam que tratar pessoas desde cedo
não era eficaz. O problema é que,
para muitos, cedo era cinco anos
após a contaminação, quando o
certo seria começar com a medicação um ano após o contágio.
O importante estudo de Ho,
mostrando o rápido e prematuro
crescimento do vírus no sangue,
só foi divulgado em janeiro de 95.
Antes, havia apenas alguns estudos sugerindo que no período em
que o paciente ainda estava saudável seu organismo já produzia
grandes quantidades de vírus.
Quando fui infectado, as pessoas
se perguntavam se eu não deveria
começar a me tratar imediatamente, mas em 1993 não havia testes
precisos como o PCR, capaz de detectar o material genético do vírus.
Agora nomes como David Ho dizem que essa é a forma correta de
tratamento. Atualmente já temos à
disposição uma variedade de remédios que podem ser combinados para conter o vírus e desenvolver imunidade. Naquela época, o
que havia era AZT e DDC. Não tínhamos muita escolha, mas estávamos fazendo a coisa certa sem
saber. Era uma aposta.
Folha - Como caminha a pesquisa
para o combate à Aids?
Johnson - Temos avançado,
mas é só o começo da batalha. É
preciso desenvolver medicação
mais eficiente e menos tóxica. Não
é possível dizer por quanto tempo
essa medicação pode ser consumida antes que comecem a intoxicar
o organismo a ponto de terem de
ser evitadas, o que vai trazer o HIV
de volta ao organismo. Pacientes já
desenvolvem resistência aos inibidores de protease, e o vírus tornou-se resistente às drogas.
Folha - Você nunca pensou em
desenvolver novas drogas?
Johnson - Minha pesquisa é sobre como o HIV infecta o cérebro.
Sou PhD em farmacologia, mas
não trabalhei nessa área de desenvolvimento de drogas. O que eu fiz
em 93 foi apenas procurar as novas
idéias e tentar aplicá-las antes. Minha formação é em neuropatologia, e é assim que espero ajudar as
vítimas da Aids.
Próximo Texto | Índice
|