São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997.

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CIÊNCIA
De médico a paciente de Aids


Em ``Possível Milagre'', Mahlon Johnson relata sua luta para sobreviver
ANDREA FORNES
Editora de Exterior e Ciência

O médico Mahlon Johnson convivia com o HIV muitos anos antes de ser infectado pelo vírus causador da Aids. Como neuropatologista, ele se especializou em biópsias e autópsias de pacientes com síndrome de deficiência imunológica adquirida.
Numa noite chuvosa de setembro de 1992, em Nashville (Tennessee, EUA), um acidente ocorrido enquanto autopsiava o cadáver de um paciente terminal de Aids mudou sua vida aos 38 anos.
"Até esse momento, tudo, apesar de delicado e perigoso, tinha sido coisa de rotina. Mas então, numa fração de segundo, meus dedos escorregaram e minha mão voou na direção do bisturi ensanguentado. De repente senti uma dor aguda subindo pelo braço. A julgar pela dor, o corte era profundo, e por um segundo fiquei ali, parado, de boca aberta, diante do que tinha feito. Vi meu próprio sangue jorrando e preenchendo cada camada de luva, agora cheia de sangue com Aids. Senti as mãos pegajosas e molhadas e, em pânico, entendi que, através do rasgo da luva, um sangue encontrava o outro na minha mão ferida."
O relato de como passou de médico a paciente está no livro "Possível Milagre", lançado pela Companhia das Letras (316 págs., R$ 25). Às vésperas de completar 43 anos, Johnson diz que sempre foi um lutador. Começou a lutar pela sobrevivência ao nascer, seis semanas antes do previsto e pesando apenas dois quilos.
O "milagre" que o fez resistir no passado parece estar se repetindo agora. Após diversos exames que apontavam resultado negativo, ele foi diagnosticado soropositivo em 1993. Com um tratamento agressivo e precoce, que ele mesmo estabeleceu, conseguiu controlar a doença, que já infectou 22 milhões de pessoas no mundo.
O último exame feito por Johnson mostrou uma contagem de pouco mais de 1.300 células CD4 por milímetro cúbico de sangue. A contagem das células CD4 do sistema imunológico, um dos principais alvos do HIV, é uma das formas de avaliar o estágio da doença. Contagens de CD4 menores do que 200 são suficientes para diagnosticar a Aids num paciente.
"Era como se a doença lhe tivesse dado uma razão de viver que antes faltava", escreveu o médico Abraham Verghese no prefácio do livro. Ele continua o mesmo "workaholic" de sempre no Centro Médico da Universidade do Tennessee, em Knoxville, e na Escola Médica da Universidade Vanderbilt, mas trabalha principalmente para combater e ajudar outras pessoas a combater a Aids.
"Espero que o meu livro possa ser útil para as pessoas no Brasil. Nessa nova era da Aids, a maioria das pessoas que está sendo contaminada é de mulheres, que representam entre 25% e 30% dos novos casos, e hispânicos. São as vítimas inocentes que precisam ser alertadas sobre as novas opções de tratamento que podem dar esperança. Passo a maior parte do tempo tentando ajudar mulheres soropositivas", disse à Folha por telefone. A seguir, os principais trechos.

Folha - O lançamento de seu livro deve ter abalado a comunidade médica. Qual foi a reação a ele?
Mahlon Johnson -
Não posso falar por todos os médicos, mas muitos ficaram satisfeitos porque o livro é equilibrado. Fui bastante cuidadoso ao mostrar que há razão para esperança, o que muitos dos médicos famosos que tratam de pacientes com Aids agora estão anunciando. Mas evitei dar qualquer sinal para a cura da doença.
Folha - Há, nos EUA, outros casos de médicos que foram infectados no trabalho? Segundo o seu livro, "só 0,37% das pessoas que trabalha com saúde e são acidentadas, uma em cada 270 pessoas, era infectada pelo HIV".
Johnson -
Há muitos médicos e enfermeiras que se contaminaram, e alguns deles estão bastante doentes. Em Nashville, foram registrados vários casos. A diferença é que comecei cedo um tratamento agressivo, combinando imunoterapia e drogas antivirais, o que parece ter funcionado bem. Uma das edições do "New England Journal of Medicine" do mês de março traz o relato de uma profissional da área de saúde que foi contaminada com HIV e hepatite C. Ela morreu em 28 meses.
Folha - Por que tão rápido?
Johnson -
Há estudos mostrando que profissionais da área de saúde contaminados pelo HIV têm mais dificuldade de se recuperar porque se contaminaram com sangue de alguém que apresenta a doença em estágio avançado ou que acabou de morrer de Aids. Nesse ponto, os níveis de HIV no corpo e nos tecidos são extremamente altos e os vírus, mutantes, porque o paciente já se submeteu ao tratamento com vários tipos de drogas contra as quais o vírus criou resistência.
Folha - Nos EUA, um médico que se contaminou pode trabalhar?
Johnson -
Essa é uma questão que está sendo discutida. Mas já existem algumas recomendações. No caso de um clínico geral que não expõe seus pacientes a procedimentos de risco como, por exemplo, uma cirurgia, não há problema. No meu caso, como patologista, passo a maior parte do tempo no microscópio. Praticamente não vejo pacientes, exceto aqueles nos quais faço autópsia. Eles são um grande risco para mim, mas eu não represento risco para eles porque eles estão mortos.
Folha - Antes de iniciar a autópsia que o contaminou, você reclamou sobre a falta de luvas de Kevlar. Teve de usar dois pares de luvas de látex. Os hospitais já contam com essas luvas, mais apropriadas para evitar acidentes?
Johnson -
Naquela época, o Centro de Controle de Doenças Infecciosas recomendava o uso de dois pares de luvas de látex. A melhor forma de proteção eram as luvas de Kevlar, uma inovação que algumas pessoas estavam usando, mas que nós não tínhamos.
Folha - Seria possível processar o hospital por falhar ao não garantir segurança no trabalho?
Johnson -
Faz parte do meu trabalho ficar exposto ao perigo.
Folha - Apesar de saber dos riscos, seria natural pensar que tal fatalidade jamais aconteceria com você. Em algum momento passou pela sua cabeça que um dia você poderia ser infectado?
Johnson -
Quando fui selecionado para participar desse estudo (sobre danos provocados pela Aids no cérebro) fazendo autópsias, sabia que haveria um risco, ou seja, que eu poderia ser contaminado. Enfermeiras que trabalham em pronto-socorros e cirurgiões sabem que há sempre uma chance de isso ocorrer. Por ser experiente e cuidadoso, achei que nada aconteceria.
Folha - Você teve de lidar com preconceito no trabalho?
Johnson -
Não foi tão ruim para mim como deve ser para as mulheres no Brasil. A maioria dos meus colegas é instruída. Eles ficaram horrorizados que isso tivesse se passado comigo, mas não era como "Vicky" (personagem do livro), que vive nas montanhas, onde as pessoas temem os soropositivos a ponto de não quererem chegar perto nem conversar. Eles agem como se tivesse algo errado.
Folha - Você acha que o seu livro pode ajudar os médicos?
Johnson -
É importante que os patologistas saibam os riscos de uma autópsia. Estou certo que depois de tomarem conhecimento do meu caso, que também foi divulgado em revistas especializadas, os médicos passaram a ser mais cuidadosos. Provavelmente reavaliaram o que estão fazendo e passaram a exigir melhores condições de trabalho, como luvas de Kevlar... Espero que sim.
Hospitais em Nova York ou San Francisco sempre contaram com um bom equipamento porque já estavam lidando com muitos pacientes de Aids, o que não ocorria nos pequenos hospitais.
Folha - Você continua trabalhando normalmente?
Johnson -
Trabalho o tempo todo. Nunca deixei de trabalhar por motivo de saúde. Nos últimos anos, tenho trabalhado mais do que nunca -nas madrugadas, nos finais de semana, nos feriados e nas férias trabalhei no livro, o que me deixou ainda mais ocupado. Estou perfeitamente saudável.
Folha - Como está a sua saúde?
Johnson -
Absolutamente boa. A contagem de CD4, em fevereiro, deu 1.900, número bastante alto, o que me fez reduzir as doses de IL2 (substância produzida naturalmente pelo corpo e que estimula o crescimento de células do sistema imune). A última contagem, em março, deu 1.331. Vou continuar reduzindo o IL2 porque a contagem está acima do desejado.
Folha - O que você toma?
Johnson -
IL2, dois inibidores de protease e vários antivirais. (No livro, Johnson diz que tomava, no final do ano passado, 28 pílulas por dia -seis ritonavir, três saquinavir, duas cápsulas de AZT e uma de 3TC no café da manhã e no jantar; mais uma cápsula de AZT, um grama de vitamina C, complexo B e betacaroteno à noite).
Folha - O que você fez é o que David Ho está tentando provar agora ser a receita mais eficaz, ou seja, tratamento rigoroso logo após a contaminação?
Johnson -
É muito gratificante. Agora acredita-se que é melhor começar com um tratamento agressivo desde cedo, mas quando fui contaminado era difícil convencer os outros porque estudos mostravam que tratar pessoas desde cedo não era eficaz. O problema é que, para muitos, cedo era cinco anos após a contaminação, quando o certo seria começar com a medicação um ano após o contágio.
O importante estudo de Ho, mostrando o rápido e prematuro crescimento do vírus no sangue, só foi divulgado em janeiro de 95. Antes, havia apenas alguns estudos sugerindo que no período em que o paciente ainda estava saudável seu organismo já produzia grandes quantidades de vírus.
Quando fui infectado, as pessoas se perguntavam se eu não deveria começar a me tratar imediatamente, mas em 1993 não havia testes precisos como o PCR, capaz de detectar o material genético do vírus.
Agora nomes como David Ho dizem que essa é a forma correta de tratamento. Atualmente já temos à disposição uma variedade de remédios que podem ser combinados para conter o vírus e desenvolver imunidade. Naquela época, o que havia era AZT e DDC. Não tínhamos muita escolha, mas estávamos fazendo a coisa certa sem saber. Era uma aposta.
Folha - Como caminha a pesquisa para o combate à Aids?
Johnson -
Temos avançado, mas é só o começo da batalha. É preciso desenvolver medicação mais eficiente e menos tóxica. Não é possível dizer por quanto tempo essa medicação pode ser consumida antes que comecem a intoxicar o organismo a ponto de terem de ser evitadas, o que vai trazer o HIV de volta ao organismo. Pacientes já desenvolvem resistência aos inibidores de protease, e o vírus tornou-se resistente às drogas.
Folha - Você nunca pensou em desenvolver novas drogas?
Johnson -
Minha pesquisa é sobre como o HIV infecta o cérebro. Sou PhD em farmacologia, mas não trabalhei nessa área de desenvolvimento de drogas. O que eu fiz em 93 foi apenas procurar as novas idéias e tentar aplicá-las antes. Minha formação é em neuropatologia, e é assim que espero ajudar as vítimas da Aids.

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