São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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Ciência em Dia

Nossos primos corais

Marcelo Leite
editor de Ciência

Qualquer pessoa sensata, mesmo leiga em biologia, diria que moscas drosófilas são parentes mais próximas dos seres humanos do que um recife de corais. Quanto mais não seja, ao menos por sua simetria bilateral, quer dizer, pelo fato de seus corpos poderem ser divididos em metades similares por uma linha imaginária, como os nossos.
Tal arquitetura está ausente dos milhares de pólipos que compõem o organismo coletivo dos corais, um tipo de animal muito mais recuado na evolução, coisa de mais de 500 milhões de anos. Cada um deles é pouco mais que um saco dotado de sistema digestivo e de uma rede primitiva de nervos. Apesar disso, a análise de seus genes está revelando um parentesco tão próximo quanto desconcertante com os vertebrados.
Antes da publicação de um trabalho de David Miller e colegas da Universidade James Cook, da Austrália, no periódico "Current Biology" (www.current-biology.com), os biólogos moleculares partilhavam da opinião leiga, ou seja, acreditavam que as drosófilas eram geneticamente mais próximas dos vertebrados que os corais. Como os homens são muito mais complexos que as moscas, raciocinavam que os genes necessários para desenvolver essa complexidade eram invenções vertebradas recentes na linha do tempo evolutivo.
Com isso, não faziam nada mais do que seguir a noção, também ela intuitiva, de que organismos complexos devem ter genomas mais complexos. Novas funções exigem novos genes, óbvio. Ocorre que nada, na ciência e particularmente na biologia, é assim tão simples e linear.
Miller e seus colaboradores na aprazível cidade tropical de Townsville (nordeste da Austrália), ponto de partida para inúmeros cruzeiros à Grande Barreira de Corais, decidiram testar a tese da inventividade genética dos vertebrados comparando os genomas de homens e moscas com o de pólipos da espécie de celenterado Acropora millepora, muito comum nos mares da região. Descobriram coisas surpreendentes: dos quase 1.400 fragmentos de genes estudados, 10% são partilhados só por humanos e pelo celenterado, e apenas 1% o são exclusivamente pela mosca e pelo coral.
Pela lógica anterior, drosófilas e pólipos são anteriores a vertebrados e deveriam partilhar mais genes. A explicação aventada pelo grupo de Miller no artigo de dezembro é que as moscas dispensaram esses genes durante sua evolução, mesmo no processo de se tornarem mais complexas -uma idéia contra-intuitiva até mesmo para cientistas genocêntricos.
Mais estranho ainda foi descobrir que vários desses genes comuns a homens e corais estão ativos no ultracomplexo cérebro humano. Seguindo a lógica estreita, nada teriam a fazer no celenterado, que ostenta o mais simples sistema nervoso entre os animais. Uma das hipóteses levantadas em Townsville é que corais como o A. millepora descendam eles mesmos de ancestrais mais complexos. Nesse caso, os genes revalorizados pelos vertebrados teriam permanecido nos corais como uma espécie de fóssil da complexidade perdida.
Vários estudos serão necessários para testar essas novas hipóteses, mas nossos primos corais já deixaram uma lição: a evolução procede muitas vezes por caminhos tortuosos, e as marcas que fixa nos genomas os fazem parecer mais com palimpsestos do que com mapas.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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