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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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Ciência em Dia

Desgoverno na Amazônia

Marcelo Leite
editor de Ciência

A palavra "governança" é infeliz, um desses neologismos produzidos pela novilíngua do circuito ONU-ONGs-Davos, mas ela designa o que está faltando na Amazônia: controle do poder público. Só o descontrole galopante parece ser capaz de explicar os números preliminares de desmatamento para 2001-2002, mais de 25 mil quilômetros quadrados -um aumento de cerca de 40% em relação ao período anterior.
Pense bem: isso corresponde a uma área 16 vezes maior que a do município de São Paulo, onde cabem 10 milhões de pessoas. Se fosse possível imaginar uma conurbação 16 vezes maior que a capital paulista, a área destruída nos dois últimos anos do governo FHC poderia teoricamente conter quase toda a população do Brasil.
Foi o segundo maior índice de desflorestamento na Amazônia Legal em 15 anos, desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) iniciou o levantamento sistemático da destruição da mata com base em imagens de satélite. O recorde ainda está com o período 1994-1995, quando se foram 29 mil quilômetros quadrados -mas aqueles foram anos de crescimento econômico, alimentado pelo entusiasmo do Plano Real.
Não foi decerto o caso de 2001-2002, quando a macroeconomia já estava pagando o preço da crescente dependência de capitais externos com desemprego e depressão. O país continua fissurado por dólares, e um dos poucos setores que têm conseguido manter esse fluxo é o do agronegócio, que internaliza moeda forte por meio da exportação de produtos como soja e carne.
Há dúvidas, porém, quanto ao verdadeiro motor do desmatamento, se são as grandes propriedades monocultoras, os pequenos agricultores ou a exploração madeireira. Provavelmente é uma combinação dos três, numa dinâmica amazônica que em geral se inicia com a exploração predatória da madeira. De todo modo, as três atividades chegam no lombo da fronteira agrícola, que avança pela região Centro-Oeste (devastando parte do cerrado) em direção à Norte.
Seria uma besteira tentar barrar essa expansão, mesmo porque o governo Lula deixou já evidente que conta com esses dólares para insistir na ortodoxia econômica. Cabe porém ao governo federal zelar para que essa pressão antrópica (populacional) seja canalizada para aquelas áreas em que o dano ambiental se mostre administrável, e exigir que se cumpram as exigências de lei.
Não faz muito tempo o Estado de Mato Grosso foi saudado como exemplo de avanços nesse campo da tal governança, cujo governo (administração Dante de Oliveira) havia criado um sistema de licenças para desmatamento fiscalizado com imagens de satélite e sistemas de geoprocessamento. O proprietário interessado em desmatar uma área dentro do permitido por lei tinha de entregar um arquivo digital com localização e perímetro exatos, e no ano seguinte o poder público podia conferir com novas imagens de satélite se o desmatamento ficara dentro dos limites licenciados.
Os ambientalistas se entusiasmaram com a experiência e advogaram sua exportação para outros Estados da Amazônia. Hoje, com o choque da mudança no plano federal, uma aguda dependência de dólares na economia nacional e a eleição de um "rei da soja" (Blairo Maggi) em Mato Grosso, é o caso de preparar-se para a possibilidade de que a governança esteja em franca marcha a ré na Amazônia -mesmo que no Ministério do Meio Ambiente paire a figura respeitável de Marina Silva.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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