São Paulo, domingo, 06 de setembro de 2009

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+Marcelo Leite

Pães e ideias


Diante da pobreza das ideias contemporâneas, melhor revisitar os velhos mestres


A mesa de trabalho se enche de aleluias, atraídas pela luz artificial. Em pleno inverno, é uma surpresa dar com esses insetos, cujas poucas horas de vida alada -daí o nome de sua ordem, efemerópteros- começam no entardecer de dias de intenso calor. Serão as asas derrubadas sobre o tampo mais um signo do aquecimento global?
Provavelmente não. Um registro sistemático com todas as tardes de sua chegada incômoda quase certamente apontaria várias de agosto e setembro, quando não é raro fazer calor. A mera pergunta, contudo, já trai a compulsão humana que está na origem da ciência: procurar e atribuir razões aos eventos da natureza.
O comum das pessoas não se dá conta de como essa atitude diante do mundo está enraizada nas pessoas, naquilo que se convencionou chamar de natureza humana. Predomina uma visão utilitarista da ciência, sempre associada às vantagens do progresso técnico. Pesquisa vira sinônimo de remédios e máquinas melhores.
Diante da pobreza das ideias contemporâneas, melhor revisitar os velhos mestres. Um bom antídoto contra esse veneno chegou à praça na série da Editora Unesp batizada, sem trocadilho, de Coleção Pequenos Frascos. É "Escritos sobre Ciência e Religião", do britânico Thomas Henry Huxley (1825-1895).
Huxley ficou conhecido como "o buldogue de Darwin", pela defesa encarniçada da obra do autor de "Origem das Espécies", publicado há exatos 150 anos. Nesta coletânea brasileira reúnem-se três breves ensaios: "Sobre a Conveniência de se Aperfeiçoar o Conhecimento Natural" (1866), "O Natural e o Sobrenatural" (1892) e "Ciência e Cultura" (1880). Poucos defensores da ciência natural no presente escrevem com a elegância do buldogue oitocentista. Em especial no embate contra as igrejas e a superstição, prefere-se nos dias atuais a sutileza de um rottweiler.
Huxley aponta que a influência do sobrenatural na vida das pessoas está diminuindo (mal podia saber...), em favor do conhecimento objetivo da natureza. Sustenta que isso constitui um progresso espiritual. Como no caso da astronomia, que nasceu para calcular a sucessão das estações ou as rotas dos navios e terminou por povoar a mente dos homens com noções tão distantes da vida prática: "Ao buscar pão, colhem ideias".
Não se iluda com a fineza: Huxley está em campanha para extraditar a religião aos confins da vida privada. Torna-se impiedoso ao criticar o protestantismo, com duas frases memoráveis, por não renunciar ao dogma da autoridade sobrenatural da Bíblia. "Em vez de ser um escravo do papado, o intelecto torna-se servo da Bíblia", vaticina. "Não se liberta um prisioneiro simplesmente raspando-se a ferrugem de seus grilhões."
O melhor ensaio é o último, sobre ciência e cultura. Huxley apoia a proposta de um mecenas de criar uma escola exclusivamente voltada ao ensino de ciências, sem espaço para a cultura literária -base da educação clássica da época. O buldogue advoga que o conhecimento da natureza tem tanto ou mais potencial para elevar o espírito.
Huxley localiza a essência da cultura no que chama de crítica da vida. "Cultura (...) envolve a posse de um ideal e o hábito de estimar criticamente o valor das coisas tomando como base um padrão teórico", afirma.
Acima da crítica literária, ele defende a crítica científica da vida, que "convida o estudioso a procurar pela verdade não entre as palavras, mas entre as coisas". Ideia simples como o cão, com presas sob medida para os pedestres de hoje.


MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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