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O SONO E O SONHO
DO COLUNISTA DA FOLHA
Não foi à toa que "Piloto"
terminou escolhido como
nome de batismo de Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro, 34, na roda de capoeira que se
reúne aos sábados em Durham, Carolina do Norte. Todos os movimentos de seu corpo são intensos e calculados, frutos de concentração e determinação. O gingado pode resultar um pouco rígido, mas as qualidades vêm a calhar para um neurocientista prestes a abandonar o porto seguro da Universidade Duke,
uma das melhores em pesquisa biomédica dos Estados Unidos, pelas
águas incertas de Natal (RN).
Ribeiro se instala em praias nordestinas, na primeira semana de dezembro, para comandar o futuro
Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN). É um sonho
de três neurocientistas expatriados
que nasceu com a eleição de Lula e
que, como as esperanças de muitos
em seu governo, vem sendo sucessivamente adiado. Deveria ter aberto
as portas num prédio provisório em
agosto, depois ficou para outubro,
agora deve sair só em 2006.
Nada parece capaz, porém, de desviar Piloto do curso que traçou para
voltar ao Brasil, após uma década de
pesquisa nos Estados Unidos. Nem
mesmo a recente rejeição de um
projeto do Instituto do Milênio pelo
CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Ainda que com R$ 1 milhão a
menos no orçamento do IINN, o
biólogo brasiliense já está procurando casa na capital potiguar, onde
pretende passar 80% de seu tempo
(o restante fica para viagens à Carolina do Norte, onde a mulher, Janaina
Hernandez Pantoja, completa em
maio seu doutorado pela Duke).
"Não saí do Brasil para fazer carreira aqui", resume o pesquisador da
Duke. "Na minha área eu sou competitivo, e quero continuar assim.
Competir mano a mano com os caras [pesquisadores de países ricos]."
Ele se diz convencido de que isso é
possível em poucos campos, como a
neurociência, "onde o jogo ainda
não está jogado". O mesmo não valeria para áreas como a genômica,
em que agências de fomento brasileiras têm despejado milhões: "Um
tiro no pé", diz, embora reconheça a
importância de criar competência
em biologia molecular no país.
Foi com esse espírito pioneiro que
Ribeiro aceitou pilotar o projeto
posto em pé por seu chefe na Duke,
Miguel Nicolelis, que ele prefere chamar de "líder". Embora a idéia de
criar um laboratório de ponta num
lugar paradisíaco -como o Laboratório de Cold Spring Harbor, em
Long Island (EUA)- tenha surgido
em conversas de Piloto com seu antigo orientador de doutorado na
Universidade Rockefeller, Claudio
Mello, foi com a adesão de Nicolelis
que o sonho de repatriação científica
começou a ganhar corpo. E que corpo: só as obras civis do IINN estão
orçadas em cerca de US$ 20 milhões.
Ribeiro se contagiou com o espírito "meio bandeirante" do paulista
Nicolelis. "Eu sou o capitão-do-mato do Miguel no "rat lab" da Duke." É
assim que ele resume sua condição
de braço-direito no laboratório de
roedores, um dos dois com que Nicolelis fez fama por conseguir amostrar sinais elétricos de dezenas e centenas de neurônios individuais dos
bichos, simultaneamente, e com eles
controlar movimentos de braços robóticos. No segundo, o "monkey
lab", onde atuam os chamados macacos-ciborgues, manda outro Miguel, o russo Mikhail Lebedev.
Foram as cores verde e amarela
que levaram Ribeiro de Nova York,
sede da Rockefeller, para a pacata
Durham, onde faz desde 2000 um
pós-doutorado com Nicolelis. Eles
se conheceram em 1998, na Alemanha, durante um congresso de neurociência realizado na época da Copa do Mundo da França. Alertado
por uma conhecida, o estudante foi
assistir a uma palestra do pesquisador paulista, que se apresentou com
a camisa da Seleção Brasileira. "Ele
me ganhou na hora", conta Ribeiro.
Os microeletrodos do laboratório
de Nicolelis também ajudaram. De
início Ribeiro encarou com algum
ceticismo sua capacidade de registrar, na época, os disparos individuais de 30 neurônios, ao mesmo
tempo. Foi ver e saiu convencido: "É
o melhor laboratório de eletrofisiologia do mundo em neurociência".
Hoje a equipe consegue amostrar
mais de cem células neurais juntas.
Piloto não hesitou diante da nova
rota que se abria, a chance de usar
uma ferramenta de alta resolução espacial para investigar o cérebro durante as várias fases do sono. Com
ressonância magnética nuclear, a alternativa, não poderia obter informações sobre neurônios isolados,
por exemplo. Sob sua supervisão,
outros estudantes e pesquisadores
examinam a atividade neuronal na
realização de outras funções, como
fome/saciedade e memória.
A relação entre sonhos e formação
de memórias, de resto, ocupa o centro das atenções de Ribeiro desde o
doutorado. No modelo que vem desenvolvendo, a fase do sono em que
ocorrem os sonhos é o estágio final
de marés sucessivas de reverberação
dos vestígios do dia pelo cérebro. "O
sono está para a memória assim como a digestão está para o alimento",
resume. O processo começa pelo hipocampo e termina no córtex cerebral. Noutra metáfora, bem brasileira: "Entra tudo pelo Rio de Janeiro e
vai parar no Alto Juruá", diz. "O córtex é um "Grande Sertão Veredas"."
Sertão, mar, tanto faz. Para o bom
piloto, qualquer caminho é caminho, desde que seja procurado e encontrado.
(ML)
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