São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
Próximo Texto | Índice

CIÊNCIA
Carlos Chagas teve quatro indicações ao prêmio máximo da medicina
O Nobel perdido

MARÍLIA COUTINHO
especial para a Folha

O cientista brasileiro Carlos Chagas (1878-1934) foi indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Essa informação, com 85 anos de atraso, é peça de um enigma difícil de entender: por que, quando os contemporâneos europeus de Chagas com descobertas da mesma natureza eram laureados, o Nobel foi negado ao descobridor de uma das doenças parasitárias que mais afligem o continente americano?
As quatro indicações de Chagas ao Nobel foram confirmadas por Nils Ringertz, secretário da Comissão Nobel para Fisiologia e Medicina, do Instituto Karolinska, em Estocolmo, na Suécia.
A indicação de Chagas ao Nobel de 1921 foi examinada por Gunnar Hedén, que "aparentemente" fez um relatório oral à comissão. Nada consta quanto à indicação de 1913. Nesse ano, Charles R. Richet levou o prêmio em reconhecimento ao seu trabalho de descoberta da reação anafilática, em que um organismo reage à injeção na corrente sanguínea de uma determinada proteína.
Em 1921, não houve laureado. Comentando a nomeação de que tinha conhecimento, de 1921, o historiador Sierra Iglesias afirma que o instituto sueco se dirigiu a organismos brasileiros, que desaconselharam a premiação, mas não menciona as fontes (1).
Segundo João Carlos Pinto Dias, pesquisador da Fiocruz (Fundação Instituto Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro, não há, nos arquivos de Manguinhos ou com a família de Chagas, nenhum documento sobre o caso (2).
A primeira indicação oficial, datada de 1º de janeiro de 1913, foi de Pirajá da Silva. A segunda, de 21 de dezembro de 1920, foi feita por H. de Gouvêa. Foram feitas duas outras indicações não-oficiais, segundo Ringertz.

A descoberta da doença
Há 90 anos, Chagas apresentou à comunidade científica e médica um pacote de novidades: um novo parasita (o protozoário Trypanosoma cruzi), transmitido por um inseto hematófago (que se alimenta de sangue) a diferentes vertebrados, e uma série de sintomas associados à infecção humana daquele protozoário.
Chagas acabava de "inventar" uma nova doença tropical, a tripanossomíase americana, batizada depois de doença de Chagas. Reconhecido imediatamente no Brasil e no mundo, Chagas recebeu prêmios e honrarias.
Em 1912, Chagas ganhou o Prêmio Schaudinn, conferido a cada quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo (Alemanha) à mais significativa contribuição em protozoologia.
Os concorrentes de Chagas eram Ehrlich, Roux, Metchnikoff, Laveran, Nicolle e Leishman. Laveran ganhou o Nobel em 1907, Ehrlich e Metchnikoff foram laureados em 1908 e Nicolle, em 1928. Os membros da comissão julgadora eram outras tantas celebridades, que incluíam Koch (Nobel em 1905), Ross (Nobel em 1902) e Golgi (Nobel em 1906).
De 1912 até praticamente sua morte, Chagas recebeu convites e honrarias de muitas instituições estrangeiras.
Mas, se no exterior a receptividade a Chagas foi grande, no Brasil a relação da comunidade médica e científica com a descoberta e seu descobridor foi sempre ambivalente: não há dúvidas de que houve muita euforia no momento em que a descoberta foi divulgada.
Em 1910, Chagas foi aclamado membro titular da Academia Nacional de Medicina e foi escolhido para ocupar um cargo de chefia no Instituto Soroterápico de Manguinhos. Depois que Oswaldo Cruz morreu, em fevereiro de 1917, Chagas herdou a diretoria do instituto. Em 1920, quando foi criado o Departamento de Saúde Pública, Chagas foi nomeado seu primeiro diretor, acumulando cargos.
O prestígio de Chagas tanto na medicina experimental como na saúde pública parecem evidentes. No entanto, existiu desde muito cedo um grupo de descontentes.

O "grupo anti-Chagas"
Cada novo cargo, honraria ou indicação no Brasil reforçava o "grupo anti-Chagas". Não gostavam das idéias de Chagas, dos critérios de mérito que ele e Oswaldo Cruz instituíram, das relações de Chagas com instituições estrangeiras e nem da sua condução dos negócios da saúde pública.
Quando o Departamento de Saúde Pública foi criado, o poderoso Afrânio Peixoto tinha a pretensão de dirigi-lo. Com a nomeação de Chagas, Afrânio tornou-se o mais virulento inimigo do descobridor da tripanossomíase.
Foi Afrânio Peixoto quem, dois anos depois, abriu a chamada "disputa da Academia Nacional de Medicina", em que acusações sérias foram feitas em reunião daquela casa em novembro de 1922.
Chagas solicitou que uma comissão julgasse as acusações que lhe faziam: a de que a doença não era consistente, de que ela não tinha relevância epidemiológica e de que ele próprio não seria nem mesmo o seu descobridor, cabendo o título a Oswaldo Cruz.
A comissão trabalhou de forma turbulenta, de 1922 a 1923. Finalmente, em 6 de dezembro de 1923, a comissão concluiu favoravelmente a Chagas.

O desprestígio da descoberta
Depois da disputa da academia, a doença de Chagas caiu no esquecimento: não foi mais discutida e foi pouco pesquisada. Sumiu dos currículos médicos e não foi mais diagnosticada nos hospitais.
Só depois da morte de Chagas, em 1934, é que um vigoroso movimento de restauração do interesse na doença vingou. A partir daí, milhares de novos casos foram diagnosticados e o alcance epidemiológico da doença pôde ser compreendido.
A pesquisa cresceu e gerou claros casos de sucesso científico tanto no controle da doença, em clínica e, mais recentemente, em biologia molecular.
Talvez jamais saibamos exatamente o que impediu que Chagas viesse a ser o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Nobel. Só o que sabemos é que nenhum brasileiro esteve tão perto dele.

Notas:
1. Salvador Mazza - su vida y su obra - redescobridor de la enfermedad de Chagas. J. P. Sierra-Iglesias. 1990. San Salvador de Jujuy, Universidad Nacional de Jujuy, 527 p.
2. "Carlos Chagas: Prêmio Nobel em 1921". João Carlos Pinto Dias. Conferência Nacional de Saúde On Line. (http://www.datasus.gov.br/cns/documentos/Chagas.htm


Marília Coutinho é pesquisadora associada do Departamento de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora visitante do Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade da Flórida, em Gainesville (EUA)



Próximo Texto: Uma pesquisa completa
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.