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ANÁLISE
Espécie "primitiva" revela quem somos
DA REPORTAGEM LOCAL
Afinal, algo entre 1% e 4% do
genoma de uma pessoa -a contribuição calculada dos neandertais para os não africanos -
é pouco? Depende. O antropólogo americano John Hawks
fez as contas: é o mesmo legado
hereditário que um tataravô ou
tataravó deixaria para você.
A diferença é que, no caso dos
neandertais, isso persistiu depois de 1.500 gerações, e não de
cinco. De certa forma, é como
se, entre quase 7 bilhões de pessoas vivas hoje, houvesse 50
milhões de neandertais por aí.
Essa talvez seja a primeira
revolução mental embutida na
publicação do genoma. Depois
de algumas décadas caricaturando os neandertais como inferiores, lerdos, menos sofisticados, a sobrevivência dessa
porção pequena mas significativa deles mostra que, paradoxalmente, eles foram um sucesso evolutivo considerável.
Ao que parece, ao menos alguns ancestrais das pessoas de
hoje não os consideravam inferiores ao status de "humano de
verdade". E, falando de "o que
significa ser humano", essa talvez seja a maior dádiva desses
parentes desaparecidos. O genoma deles é uma grande chance de atacar essa pergunta.
Isso porque, até agora, o único ponto de apoio para entender as mudanças genéticas que
criaram a humanidade era o genoma dos chimpanzés. O problema é que 6,5 milhões de
anos separam o homem de hoje
do ancestral comum que compartilha com os macacos. É um
oceano de tempo, no qual dezenas de espécies de homens-macacos podem ter existido.
O "divórcio" da linhagem humana-neandertal, porém, tem
só 400 mil anos. É justamente a
janela de tempo em que a arte,
as ferramentas complexas e a
religião surgiram. A equipe que
soletrou o genoma já está
achando diferenças mínimas,
mas talvez significativas, entre
o Homo sapiens e seu primo.
Já há, por exemplo, uma lista
de apenas 88 proteínas que diferem entre as espécies. E não
dá para descartar uma possibilidade irônica: a de que pelo
menos alguns dos genes importantes para o comportamento
ou a inteligência humana tenham vindo dos neandertais.
O genoma é, por último, um
triunfo de como a ciência funciona. Svante Pääbo, coordenador do projeto, negou durante
anos que a mestiçagem tivesse
ocorrido. Ele apostava em dados preliminares de DNA, contra o que alguns antropólogos
diziam ver nos fósseis.
Teve de voltar atrás. O antropólogo Erik Trinkaus, defensor
da hipótese híbrida, diz que o
preconceito, talvez algum nojo,
explicava a resistência à ideia.
Se for verdade, é confortador
ver que alguns preconceitos
não resistem à ciência honesta.
(REINALDO JOSÉ LOPES)
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