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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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Ciência em Dia

De olhos bem fechados

Marcelo Leite
editor de Ciência

Esquiar na neve é uma dessas experiências únicas que a espécie humana presenteou a si mesma por meio da cultura e da invenção, da capacidade de projetar-se no próprio ambiente por meio de artefatos e próteses -no caso, um imprescindível par de esquis. Basta um pouco de coragem motora e olhos bem abertos, pois do restante se encarregam a gravidade e o atrito reduzido.
Não foi esse, porém, o caso de MM, que se tornou personagem incógnito de um artigo científico na revista "Nature Neuroscience" (www.nature.com/neuro), publicado eletronicamente em 24 de agosto. Um acidente aos três anos e meio inutilizou seu olho esquerdo e cegou o direito, com danos na época insanáveis à córnea. Tinha apenas alguma percepção de luminosidade, mas nenhuma experiência de forma ou cor.
Uma série de complicações impediu por 40 anos que MM recebesse um transplante de córnea, até que as dificuldades pudessem ser contornadas com o auxílio de células-tronco (um tipo básico de célula, que guarda alguma capacidade de diferenciar-se em tipos celulares mais específicos). Aos 43 anos, voltou a ver. Melhor dizendo, aos 43 anos seu olho direito voltou a ver. MM ainda teria de dar duro para voltar a enxergar.
MM virou "paper" na revista porque seu caso exemplificava, com detalhes, algo que neurocientistas sabem há tempos, mas que a maioria das pessoas talvez não se dê conta: não é o olho que "vê", mas sim o cérebro. Bebês nascem com olhos funcionais, mas seus cérebros precisam de tempo para ligar as conexões necessárias para processar os impulsos originados do olho e formar imagens coerentes, interpretar distâncias e velocidades, distinguir forma de fundo, avaliar volumes e posições com base em pistas de luz e sombra. Em poucas palavras, a faculdade da visão depende da experiência da visão para consolidar-se.
Foi disso que MM ficou privado por 40 anos, e seu caso também demonstra que mesmo após os 42 meses de idade circuitos neurais fundamentais estão sendo montados. O resultado é que, cinco meses após a cirurgia restauradora da visão ocular, MM só era capaz de reconhecer formas simples e cores, além de diferenciar algumas texturas. Penava, no entanto, para identificar formas tridimensionais formadas por linhas, como cubos, ou para lidar com a transparência de figuras superpostas, por exemplo.
O mais curioso é que MM, tendo aprendido a esquiar ainda cego, com ajuda de instruções verbais de um guia, tornou-se incapaz de fazê-lo quando voltou a ver. A profusão vertiginosa de informações luminosas, que seu cérebro era incapaz de registrar e interpretar na velocidade necessária, o deixava em pânico e provocava quedas sucessivas. Esquiar, para ele, nos primeiros meses, só mesmo de olhos bem fechados.
Dois anos após a operação, narra o artigo de Ione Fine e de um time de pesquisadores de várias instituições da Califórnia (EUA), MM tinha feito progressos na sua capacidade de discriminar formas e movimentos. Começou a usar dicas como padrões de sombreamento da neve para estimar a inclinação das rampas, por exemplo. Usa cada vez mais a visão recuperada na vida cotidiana, até mesmo para esquiar de olhos abertos, mas tem consciência de que algo se perdeu: "A diferença entre hoje e há dois anos é que agora consigo adivinhar melhor o que estou vendo. O que não mudou é que eu continuo adivinhando".

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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