São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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CIÊNCIA

Os ratos de Lamarck


Outros fatores além dos genes podem ditar as características da prole
MARCELO LEITE
especial para a Folha

Um trabalho publicado este mês na revista "Nature Genetics" tira mais uma pedra do templo de fatalismo em que se refugiou a genética. O estudo, sobre a cor da pelagem de camundongos, provou que nem todas as características herdadas estão nos genes. DNA não é sinônimo de destino.
Mais que isso, o grupo liderado pela australiana Emma Whitelaw, 47, mostrou que a cor desenvolvida pela fêmea como resultado de processos bioquímicos, não do próprio patrimônio genético, pode influenciar a dos filhotes. Ou seja, características adquiridas podem ser transmitidas, e sem a intervenção de mutações no DNA que codifica os genes.
O fenômeno é chamado de hereditariedade epigenética (acima da genética, assim como "epicentro" é o ponto na superfície da Terra em que o abalo subterrâneo se manifesta). Não chega a ser uma girafa herdando um pescoço mais comprido porque a mãe o esticava, mas serve para mostrar que Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) não está tão morto.
Whitelaw, da Universidade de Sydney, e três colegas da Escócia e dos Estados Unidos usaram uma linhagem de camundongos com carga genética equivalente, resultado de 30 gerações de cruzamentos entre irmãos. Geneticamente, todos deveriam ser amarelos, mas sua cor varia num degradê que chega até a pelagem parda.
Essa variação decorre de alterações ocorridas no desenvolvimento de cada ratinho, durante a expressão dos genes para cor. Nada de surpreendente: trata-se da diferença entre genótipo (características ditadas pelos genes) e fenótipo (aquelas de fato manifestadas pelo organismo). Uma distinção que qualquer vestibulando deve ser capaz de fazer.
Exige-se também de todo estudante secundário, normalmente, que entenda a hereditariedade como uma relação entre genótipos. A distribuição fenotípica de cores dos ratinhos nada deveria ter a ver com a da próxima geração, se não é governada pelos genes. Aí é que as coisas começam a se complicar, revela a pesquisa de Whitelaw: quando a mãe cresce parda, sem que esse traço tenha um fundamento genético, observa-se na sua prole uma proporção maior de filhotes que terminam pardos.
O curioso é que essa forma de determinação epigenética vale só para o lado da mãe. A cor manifestada pelo pai -que tem carga genética quase idêntica à da mãe, lembre-se- não permite fazer previsões. Para excluir a possibilidade de que esse efeito fosse produto de algum fator desconhecido no ambiente uterino, a equipe transferiu embriões gerados por fêmeas pardas para mães de aluguel amarelas -e ainda assim nasceram mais filhotes pardos.

Contra Mendel
Rosalind John e Azim Surani, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), afirmam em comentário na mesma edição da "Nature Genetics" que essa foi "a primeira evidência convincente de hereditariedade adquirida, não-mendeliana". Ou seja, que não segue as leis de transmissão de características descobertas pelo monge austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884).
Emma Whitelaw disse à Folha, por e-mail, acreditar que essa forma de hereditariedade ocorra com todos os mamíferos. "Uma razão para que seja difícil de detectar em humanos, por exemplo, é que somos muito miscigenados. Apenas gêmeos geneticamente idênticos poderiam ser usados para provar isso, porque precisamos controlar diferenças no patrimônio genético para convencer os outros de que isso é que está em jogo. É provável que aconteça com humanos, mas há muito "ruído" para que percebamos."
No caso da pelagem dos camundongos, a equipe encontrou fortes evidências de que a modulação da mensagem contida no gene decorre da ação de trechos de DNA semelhantes a vírus, conhecidos como retrotransposons. Também está envolvido nessa característica epigenética um processo bioquímico, a metilação.

Gametas "zerados"
Até agora acreditava-se que as marcas introduzidas por eles na leitura do genoma (coleção de genes) eram "zeradas" na produção de gametas como espermatozóides e óvulos, as células reprodutivas que transmitem os genes para a próxima geração. É o que reza a ortodoxia genética: características adquiridas não são transmitidas, unicamente mutações.
Seria como descompactar e instalar no seu computador um programa baixado da Internet. Ao recompactar e transmitir o mesmo arquivo anexado a um e-mail, as características de seu sistema não seriam enviadas junto.
A pesquisa de Whitelaw e colegas mostrou que, assim como arquivos enviados por e-mail podem conter vírus de computador, os gametas também podem carregar algo mais do que os arquivos compactados dos genes. Mais ainda, estão convencidos de que essa forma de hereditariedade pode ser comum e até fundamental para o surgimento de doenças.
"Acredito que saber a sequência primária de DNA de um indivíduo será insuficiente para predizer seu fenótipo (manifestação da doença) em alguns casos", disse Whitelaw. "Esses casos vão, talvez, demandar um epigenótipo do indivíduo, isto é, uma imagem detalhada da metilação naquele locus (região no gene)."

Genoma é só o começo
Nunca é demais lembrar que o Projeto Genoma Humano vai resultar numa sequência bruta de DNA, que, se acredita, será representativa da espécie humana como um todo. Não dará conta da variação que há entre indivíduos, muito menos das intercorrências epigenéticas que podem estar envolvidas no desenvolvimento de cada organismo e suas mazelas.
Não corresponde à realidade dos laboratórios, assim, a visão ingênua e mecanicista de que decodificar o genoma implica abrir uma cornucópia da qual jorrariam tratamentos sob medida para todas as doenças. Nada disso, afirmou à Folha, também por e-mail, Rosalind John: "Obter a sequência é somente o começo. Entender a função de cada gene e sua regulação tanto por outros genes como pelas alterações epigenéticas é um desafio muito maior".


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