São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008 |
Texto Anterior | Índice
+ Marcelo Leite Idiotia ruralista
Idiotia é uma forma de retardo grave. Com alguma licença, o termo pode ser aplicado à mais recente manobra do Ministério da Agricultura, em conluio com a Frente Parlamentar da Agropecuária (vulgo bancada ruralista do Congresso Nacional), para desfigurar o Código Florestal. Por qualquer ângulo que se considere, ela é atrasada e retrógrada. A proposta foi vazada por ONGs que participaram de duas reuniões de um grupo de trabalho composto pelas pastas da Agricultura, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário. Já não participam mais. Os ambientalistas retiraram-se em protesto contra uma sugestão de mudança que faz o debate sobre a mudança do Código Florestal recuar sete anos, à proposta de reforma do deputado Moacir Micheletto (PMDB-PR). Seu projeto baixava de 80% para 50% a reserva legal de propriedades que tivessem derrubado floresta tropical na Amazônia, e de 35% para 20% as áreas de cerrado na mesma região. Em 2001, quando esse projeto foi aprovado em comissão mista do Congresso, houve um enorme protesto. A reforma do código não prosperou. Agora se levanta do túmulo. A nova investida ruralista, chancelada ao que parece pelo ministro Reinhold Stephanes, ressuscita o projeto Micheletto. Se não o corpo, por certo seu espírito. Um espírito chantageador, que acusa o Código Florestal de inviabilizar a agricultura nacional, embora esta tenha prosperado como nunca durante sua vigência. Propõe-se ali, por exemplo, uma anistia para todas as áreas de preservação permanente (APPs, coisas como margens de corpos d'água e topos de morro) ocupadas irregularmente antes de 31 de julho de 2007. Em outras palavras, a velha política brasileira de premiar quem descumpre a lei. Há mais, porém. A redução da reserva legal a até 50% (floresta amazônica) e até 20% (áreas de cerrado na Amazônia) reviveria à sombra do zoneamento ecológico-econômico. Onde ele fosse feito, os governos estaduais teriam a prerrogativa de instituir percentuais menores que 80% e 35%, respectivamente. Para usar uma metáfora bem rural, seria pôr a raposa para cuidar do galinheiro. Para usar outra, seria abrir a porteira -pela qual passariam então a boiada e bancada do desmatamento, sem aperto nem afobação. Espantoso é o momento escolhido para ventilar o retrocesso. Na mesma semana, o governo federal anunciou o compromisso de reduzir o desmatamento em 40%, até 2010, e em mais 60%, até 2017, chegando a 5.000 km2 anuais (contra 19.500 km2 na média anual do período 1996-2005 e 11.900 km2, agora). Divulgou, também, um aumento de 4% na taxa de desmatamento amazônico de 2007/2008 em relação a 2006/2007. Interrompeu-se, assim, a série de três quedas anuais sucessivas. Ainda assim, era algo a comemorar com moderação, pois no final de 2007 havia expectativa de que fosse bem maior, de uns 40%. Pior, a proposta ruralista-ministerial veio à luz na semana em que começou em Poznan (Polônia) a reunião de negociação internacional sobre mudança climática. O governo brasileiro tinha para exibir ali o trunfo da adoção de metas quantitativas de combate ao aquecimento global, reduzindo sua principal fonte de emissões de carbono (desmatamento). O aval de Stephanes à proposta arrasadora, se confirmada, sinaliza o seguinte para eventuais doadores internacionais ao Fundo Amazônia: nossas metas não devem ser levadas a sério. MARCELO LEITE é autor dos livros "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: Uma pista cósmica? Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |