São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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ENTREVISTA

BEATRIZ BARBUY

Somos dependentes, mas não queremos perder o bonde

Ganhadora de um prêmio de ciência destinado a pesquisadores de países em desenvolvimento e de outro para mulheres, a astrônoma da USP Beatriz Barbuy conta por que não se intimidou com as limitações de verba -nem com o machismo-durante sua carreira

Divulgação
A pesquisadora em frente ao Museu do Louvre, em Paris, na quinta-feira, quando recebeu o prêmio L'Óreal/Unesco

RICARDO MIOTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Vice-presidente da União Astronômica Internacional, a paulistana Beatriz Barbuy diz que o Brasil não pode abrir mão de ajuda externa para fazer astronomia de ponta, mas precisa planejar sua independência.
Aos 59, ela acaba de ganhar o prêmio L'Oréal/Unesco, dedicado a mulheres que se destacam na ciência. Solteira, conta que nasceu em família liberal e não sabia o que era machismo.
"Só comecei a perceber quando entrei na faculdade."
Barbuy também ganhou, em 2008, o prêmio Trieste, destinado a cientistas de países em desenvolvimento. Em entrevista à Folha por telefone, ela conta por que voltou ao Brasil depois de um doutorado na França, mesmo tendo qualificação para trabalhar em instituições de ponta na Europa.

 

FOLHA - Existe muito machismo na comunidade científica?
BEATRIZ BARBUY
- Está melhorando ao longo dos anos, mas a gente sabe que existe. Na hora de ter um cargo de chefia, por exemplo, ainda há algum preconceito. Ao longo da minha vida percebi isso. E não são só os homens, as mulheres também são machistas, infelizmente.

FOLHA - Um ex-reitor de Harvard disse que as mulheres têm menos habilidade com ciências exatas.
BARBUY
- Eu discordo totalmente, óbvio. Acho absolutamente ridículo. Temos todos a mesma capacidade mental. Talvez haja algum fator psicológico, mas não uma menor capacidade de raciocínio.

FOLHA - Fator psicológico?
BARBUY
- É. Astronomia exige que você fique trancado num quarto pensando, então talvez as mulheres não queiram, tenham mais necessidade de família. O homem também tem, mas ele considera que a mulher fica esperando em casa e ele pode trabalhar. O contrário ainda não é verdade. Então, acho que existe esse lado mais social.

FOLHA - Como foi a sua criação?
BARBUY
- Não teve nenhum aspecto de machismo, nenhum. Nem sabia que isso existia. Só comecei a perceber na faculdade. Meu pai não queria que eu ficasse sem fazer nada. Ele não admitiria. Acharia um horror que eu me casasse, tivesse filhos e pronto. Tive muita sorte.

FOLHA - Se a senhora tivesse filhos, gostaria que fossem cientistas?
BARBUY
- Claro. Acho que a ciência é a direção. Eu acredito mesmo. Mas o ensino é muito falho. Eu gostaria de saber mais de outras áreas, de medicina. A gente não sabe nem onde é o fígado... [Risos.]

FOLHA - Na visão de muitos leigos, investir em ciência que não tem aplicação direta é desperdício.
BARBUY
- Quem fala isso não está enxergando nada. Por exemplo, os astrônomos ficavam estudando o movimento dos satélites e procurando determinar órbitas no sistema solar. É por isso que a gente hoje tem as telecomunicações, com satélites girando por aí.

FOLHA - Por que o público leigo se interessa tanto por astrologia e tão pouco por astronomia?
BARBUY
- Há muito interesse pela astronomia. É um outro tipo de pessoa que se interessa pela astrologia. É quem precisa de um psicólogo. Eu acho, aliás, que [astrólogos] são excelentes psicólogos. A gente às vezes lê os textos, e eles são muito bons... [Risos.]

FOLHA - Falta educação básica?
BARBUY
- O que resolve é a educação. A coisa mais importante que se fez no Brasil nos últimos 50 anos foi dar bolsa de estudos para o pessoal fazer mestrado, doutorado. Hoje se formam 10 mil doutores por ano no Brasil. Isso é que está tirando o país do subdesenvolvimento.

FOLHA - A senhora fez o doutorado pela Universidade de Paris. Por que não continuou carreira fora?
BARBUY
- Eu não queria sair do Brasil. Talvez tenha sido um erro [não seguir carreira no exterior], mas eu não queria ser estrangeira o resto da vida.

FOLHA - Falta financiamento aqui?
BARBUY
- Falta dinheiro, falta pessoal em tecnologia, temos pouco tempo nos telescópios, e a gente não sabe construir nada. Aqueles anos todos de proteção do mercado -quando não se podia importar nada ou, quando podia demorava séculos- atrasaram tudo. Até hoje é complicado importar coisas.

FOLHA - Os alunos querendo fazer astronomia são poucos?
BARBUY
- Tem muito aluno querendo. Muitos são bons, a nossa geração também era. Mas, depois de um certo tempo, se você não tem dados, vai desanimando. E antigamente não tinha computador, quando eu cheguei da França [do doutorado, em 1982] passei dez anos sem. Tinha que voltar à França para fazer cálculos por causa daquela lei idiota [a reserva de mercado de informática, nos anos 80], que quase matou o Brasil. Ela matou algumas áreas da engenharia, atrasou o meu currículo, atrasou todo mundo em dez anos.

FOLHA - O Brasil está hoje em muitas colaborações internacionais em astronomia. Isso não impede o país de criar agenda científica própria?
BARBUY
- Você não é obrigado a colaborar. Mas, de fato, se eu mandar um projeto num desses telescópios melhores, vai ser muito difícil eu conseguir [sem o Brasil estar na parceria]. O Brasil não paga nada, então...

FOLHA - Isso está melhorando?
BARBUY
- Melhorou. Temos um terço de um telescópio no Chile, que é o Soar. Temos 2,5% de um telescópio de oito metros [o Gemini]. Alguns de nós estamos também produzindo instrumentos. Com muita dificuldade, mas estamos. Sempre dependendo de alguma ajuda estrangeira. Nisso, somos totalmente dependentes, mas não queremos perder o bonde para estarmos bem daqui a dez anos.

FOLHA - Seu ritmo de trabalho intenso afeta sua vida pessoal?
BARBUY
- Deve ter influenciado. Mas eu tive azar, também. Para encontrar a pessoa certa é preciso sorte. Você se casa, mas se a pessoa te engana, tem outra... o que eu vou fazer? Foi mais ou menos o que me aconteceu. Acontece com qualquer um. Aí, acho que talvez eu tenha errado: toda vez que eu tinha um problema [pessoal], eu ia lá e ficava trabalhando, em vez de procurar outra solução.

FOLHA - O trabalho era refúgio?
BARBUY
- Quando há um monte de homens na vida, você perde tempo. Várias vezes eu tive a atitude de "vou parar de perder tempo e vou trabalhar". Hoje não é preciso se sacrificar tanto. Eu poderia ter sido mais prática. "Não deu certo aqui, vai ali." Não fui prática. Romantismo, aquelas coisas... Que ainda são do meu tempo, né? [Risos.]

FOLHA - Como a senhora imagina a astronomia daqui dez anos?
BARBUY
- Com muitos instrumentos sendo feitos, telescópios grandes em todos os comprimentos de onda. Há um projeto de observatórios virtuais. A ideia é padronizar todas as observações existentes no planeta para que todos tenham acesso.


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