São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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+Marcelo Leite

Males da infância


O ser humano carrega marcas químicas indeléveis pela vida

O biólogo Sidarta Ribeiro, chefe da tropa do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (RN), costuma dar uma palestra sobre Freud e a neurobiologia que deixa torcidos os narizes tanto de psicanalistas quanto de biólogos. O ponto alto é uma relação de pesquisas recentes para mostrar que Freud atirava no que via e às vezes acertava no que não podia ver. Faltava-lhe a mira telescópica da biologia molecular.
Ribeiro terá de aumentar a lista para incluir um trabalho revelador de Patrick McGowan. O estudo da universidade canadense McGill, na última edição do periódico científico "Nature Neuroscience", focaliza um mecanismo que ajuda a entender como, de modo concreto e não por meio de vagas "pulsões", experiências da infância conformam a base do comportamento do adulto.
McGowan não trabalhou com genes, que alguns desinformados ainda supõem conter todo o destino de uma pessoa escrito em código cifrado de DNA. Deu preferência para um dispositivo químico (metilação) que silencia genes, ou seja, impede que eles sejam usados pelas células. Fez essa escolha a partir de pesquisas com ratos apontando que era um mecanismo importante para gravar no cérebro efeitos de vivências infantis.
Ninguém sabe se roedores têm complexo de Édipo, mas já se conhece bem o resultado de lambidas frequentes das ratas sobre seus filhotes. Eles se tornam mais resistentes ao estresse, característica que mantêm até a vida adulta. E esta resposta tem a ver com hormônios glicocorticóides, como o cortisol (conhecido como o "hormônio do estresse").
No foco da pesquisa canadense estava a metilação do gene NR3C1, mordaça bioquímica que atrapalha a comunicação desses hormônios. Seguindo a pista dos ratos, a equipe de McGowan levantou a hipótese de que seres humanos maltratados na infância -por abuso sexual, espancamentos etc.- apresentariam o mesmo padrão de silenciamento. Acertaram na mosca do alvo invisível para Freud.
Como não dá para fazer com gente viva os experimentos infligidos a roedores, o grupo da McGill recorreu a cadáveres. Mais exatamente, cadáveres de suicidas, divididos em dois grupos: com e sem história documentada de abusos na infância.
Para controle, examinaram também a metilação do gene NR3C1 no cérebro de pessoas que tivessem morrido de modo repentino. O resultado esperado era que o padrão de silenciamento de glicocorticóides entre suicidas maltratados na infância fosse mais intenso do que entre os outros suicidas ou entre não-suicidas. Não deu outra.
McGowan mostrou que, assim como acontece com ratos, seres humanos carregam para a vida adulta marcas indeléveis do que os entes queridos lhes fazem (ou deixam de fazer).
É óbvio que devem existir muitos outros mecanismos do gênero em ação, como alerta Steven Hyman, da Universidade Harvard, no mesmo número da "Nature Neuroscience". Para entendê-los, "será necessária a profundidade ilustrada pela linha de pesquisa que culminou no trabalho de McGowan et al., mas também uma amplitude muito maior, e então [teremos] os meios para elucidar o número estonteante de interações gene-gene e gene-ambiente que estão por trás de quem somos e do que fazemos".
O inconsciente molecular, por assim dizer -de cuja compreensão não nos encontramos tão mais próximos assim do que estava Freud quando escreveu, em 1895, seu "Projeto para uma Psicologia Científica".


MARCELO LEITE é autor da coletânea de colunas "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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