São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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Ciência em Dia

A guerra da comida

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

"Da" comida e não "por" comida, note bem: assim está sendo chamada nos EUA a mais nova polêmica sociocientífica para tirar o sono do cidadão que ainda tenta comportar-se racionalmente, na esperança de viver mais e melhor. Agora estão tentando convencê-lo de que faz bem para a saúde ser gordinho (mas não obeso). Depois de anos de propaganda dizendo que era ruim ultrapassar o índice de massa corporal de 25.
Nesta altura, o tal índice já entrou para o vernáculo. Pelo menos da classe média para cima, todo mundo sabe que se trata de dividir o peso pelo quadrado da altura. Se o resultado da conta der menos de 18,5, é preocupante (subpeso). De 18,5 até 25 é normal; de 25 a 30, sobrepeso; e acima de 30, obesidade. A suposta nova descoberta na praça diz que sobrepeso não está diretamente correlacionado com aumento do risco de mortalidade.


Se for para acreditar religiosamente na autoridade de alguém, melhor dar mais crédito aos padres, pois eles mudam mais lenta, gradual e seguramente de idéia

Foi o suficiente para a indústria de alimentos dos EUA se assanhar. Anúncios foram publicados pelo Centro pela Liberdade de Consumo que ela subvenciona, denunciando como farsa a "dita epidemia de obesidade". Tudo não passaria de mais uma incursão indevida do governo na vida privada. Nunca fez tanto sentido a expressão "freedom fries" (fritas da liberdade, apelido dado às "French fries" depois que a França negou apoio à invasão do Iraque).
O ponto de partida foram dois artigos publicados em 20 de abril no periódico "Jama" (jama.ama-assn.org/cgi/content/abstract/ 293/15/1861 e jama.ama-assn.org/ cgi/content/abstract/293/15/1868), da Associação Americana de Medicina. Ambos são assinados por pesquisadores dos afamados Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, os CDC.
No primeiro deles, de autoria de Katherine Flegal e colaboradores, encontrou-se que "sobrepeso não estava associado com um excesso de mortalidade". O segundo, de Edward Gregg e outros cientistas, indica que fatores de risco para doença cardíaca -como colesterol alto, pressão alta e diabetes- estão diminuindo mais rapidamente entre pessoas com sobrepeso, e mesmo obesas, do que entre magrelos.
Daí a alardear que ser barrigudo faz bem para a saúde vai uma grande distância. Um passo desproporcional, que a imprensa, faminta por novidades, muitas vezes não pestaneja antes de dar. Não importa que até há bem pouco tempo ela dissesse exatamente o contrário. Ou que daqui a alguns meses engatará a marcha-à-ré, assim que outro estudo epidemiológico vier à luz, e depois mais outro. Pedalar é preciso.
Pobres das pessoas que dão valor demais para essas verdades que a ciência, supostamente, traz. Se for para acreditar religiosamente na autoridade de alguém, melhor dar mais crédito aos padres e pastores, pois eles pelo menos mudam mais lenta, gradual e seguramente de idéia.
O melhor, porém, é confiar mais nos conselhos de sua avó: durma pelo menos sete horas por dia, alimente-se com moderação comendo de tudo, não fume e faça exercício sempre que puder. Assim você vai longe.

@ - cienciaemdia@uol.com.br
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