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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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Não faz mais sentido pensar em natureza X criação ou em genes X ambiente, pois falar em desenvolvimento humano é falar de duas coisas que estão inextricavelmente interligadas

O GENE LIBERTADOR

Divulgação Edward Egelman/University of Minnesota
Ilustração representa reconstrução de duas cadeias da substância DNA (em vermelho) envoltas por proteínas


por Matt Ridley

Quando os genes vieram à luz, perto do final do segundo milênio da Era Cristã, encontraram um lugar já preparado para eles à mesa da filosofia. Eram as Parcas da mitologia antiga, as entranhas da predição oracular. Eram o destino e a predeterminação, os inimigos da escolha. Eram restrições impostas à liberdade humana. Eram os deuses. A própria expressão "determinismo genético" se tornou sinônimo do inevitável.
A imagem é falsa. Agora que já afastamos o véu que encobria o genoma humano e pudemos vislumbrar um pouco do que os genes realmente fazem, começa a vir à tona uma visão mais libertadora. A natureza ["nature"] humana é realmente produto dos genes em cada um de seus pormenores, mas a criação ["nurture"] também é, pois os genes passam tanto tempo reagindo às nossas ações quanto levam para causá-las. Os genes não restringem a liberdade humana -eles a possibilitam.
Considere o gene FOXP2 no cromossomo 7, isolado recentemente pelo grupo de Anthony Monaco no Centro de Genética Humana da Fundação Wellcome, em Oxford (Reino Unido). Mutações nesse gene causam deficiências específicas de linguagem -o gene parece ser necessário para o desenvolvimento adequado da fala e da linguagem humanas.
No entanto, ninguém sonharia em argumentar que o FOXP2 "determina" a fala. Mais exatamente, ele permite que a mente humana absorva, a partir das experiências vividas na primeira infância, o aprendizado necessário para falar. Ele possibilita a criação. Charles Darwin dizia que a linguagem é "um instinto de aquisição de uma arte".


É muito mais esclarecedor pensar em genes como mecanismos da natureza humana do que enxergá-los como os causadores dela; eles são engrenagens, e não deuses


De onde tiramos a idéia de que os genes são como implacáveis manipuladores de fantoches, imunes à influência externa? Na década de 1890, o biólogo alemão August Weismann decepou as caudas de 57 gerações de camundongos e, a partir deles, criou uma nova geração. Os filhotes nasciam com caudas normais -logo, ele argumentou, Lamarck estava enganado quando afirmou que as características adquiridas modificam os elementos hereditários na linhagem de células germinativas [gametas]. Traduzido em termos moleculares, o argumento de Weismann assume a forma do "dogma central" de Francis Crick, segundo o qual a informação flui do gene para fora, e não de volta a ele. A experiência não modifica as sequências dos genes, exceto por meio de mutações raras e aleatórias. O dogma de Crick continua em grande medida verdadeiro -talvez inteiramente. Mas, como Crick reconhece plenamente, ele não explica a forma como a informação de fato retroage sobre o gene. A sequência codificada é, realmente, imune às influências externas, mas a sequência expressa [em uso na célula], não. Os genes são ligados e desligados por fatores de transcrição, que se ligam a suas sequências promotoras, e as ações das promotoras estão à mercê de fatores externos. A experiência pode não modificar a sequência de um gene, mas pode alterar sua expressão. Analisemos um exemplo. Os 17 genes CREB são uma parte vital do mecanismo do aprendizado e da memória. Se um deles não estiver funcionando, é impossível formar a memória de longo prazo. O trabalho dos genes é alterar as conexões entre os nervos para formar uma nova associação, e eles são acionados em tempo real quando o cérebro guarda uma nova memória. A transcrição dos genes é controlada pelo comportamento; o ato de aprender é que aciona os genes.

Paixão molecular
Vejamos agora outra maneira pela qual natureza e criação trabalham em conjunto -mais uma vez, as sequências promotoras estão na base de tudo. O gene receptor da vasopressina, que nos seres humanos se situa no cromossomo 12, é controlado por um promotor cujo comprimento varia de uma espécie para outra. A expressão desse gene em determinadas partes do cérebro dos roedores parece ser necessária para que eles formem vínculos monogâmicos de casal -para que se apaixonem, por assim dizer (as substâncias vasopressina e oxitocina são pequenos hormônios peptídicos que estimulam o comportamento de formação de vínculos). O rato-calunga das pradarias, por exemplo, possui uma inserção de 460 pares de bases [as "letras" químicas do DNA] no promotor do gene, algo que está ausente em seu parente próximo, o rato-calunga montanhês. Isso tem o efeito de fazer com que o gene seja expresso em uma parte do cérebro do rato das pradarias que não está presente no rato montanhês. Faz com que aquela parte do cérebro seja sensível à vasopressina, uma molécula liberada no cérebro pelo ato sexual. A consequência disso é que o rato das pradarias macho se torna, por assim dizer, "socialmente dependente" das fêmeas com as quais manteve relações sexuais, enquanto o rato montanhês é socialmente indiferente a suas parceiras do passado. De acordo com Tom Insel e Larry Young, da Universidade Emory, em Atlanta (EUA), isso explica a monogamia da primeira espécie e a poligamia da segunda. O promotor mais longo ofereceu ao animal a possibilidade de se apaixonar por suas parceiras sexuais. Agora vem a parte interessante. O gene receptor da vasopressina no ser humano é bastante parecido com o do rato-calunga das pradarias, tanto em termos do comprimento do promotor quanto em seu padrão de expressão. Mas ele varia de comprimento entre indivíduos da mesma espécie. Nas primeiras 150 pessoas cujos genes Insel estudou, ele constatou 17 comprimentos diferentes de promotores. Poderiam essas variações provocar diferenças na capacidade de cada pessoa de manter um vínculo monogâmico? Não seria inteiramente surpreendente: a propensão para o divórcio é altamente passível de ser herdada, e as pessoas adotadas são mais semelhantes a seus pais biológicos do que a seus pais adotivos, nesse aspecto. A mudança de enfoque do genoma codificado para o expresso vai alterar os termos do debate sobre a natureza humana, tanto para a ciência pura quanto para a aplicada. Por exemplo, uma pesquisa de Avshalom Caspi e seus colegas no Instituto de Psiquiatria de Londres, divulgada no ano passado, oferece uma pista fascinante sobre como o comportamento anti-social pode ser afetado por uma interação entre genes e ambiente. Quando eles examinaram um grupo grande de neozelandeses em busca de evidências de que abusos sofridos na infância pudessem induzir o adulto a apresentar comportamento anti-social, constataram que podem, sim -mas que isso acontece de maneira muito mais marcante em pessoas de determinado genótipo. Homens que haviam sido maltratados quando crianças e que apresentavam genes "de baixa atividade" para a monoamina-oxidase-A [MAO-A] no cromossomo X eram muito mais propensos a ter problemas com a lei, a descrever-se como violentos e a serem vistos como anti-sociais em testes de personalidade. Aqueles que tinham genes "de alta atividade" eram amplamente resistentes aos efeitos de maus-tratos na infância. A diferença entre os genes de alta e de baixa atividade reside, mais uma vez, no comprimento dos promotores: promotores longos e curtos produzem baixa atividade, promotores intermediários produzem alta atividade (as mulheres são menos propensas a manifestar esse efeito porque possuem um cromossomo X a mais).

Miopia alfabetizada
A miopia funciona da mesma maneira. Assim como os maus-tratos causam comportamento anti-social apenas em quem possui genes suscetíveis a isso, a leitura provoca miopia apenas em quem possui genes suscetíveis. Além disso, os genes causam miopia unicamente nas pessoas que aprendem a ler. Em sociedades em que poucas pessoas lêem, a miopia estará mais estreitamente correlacionada com a leitura do que com os "genes da miopia". Mas, numa sociedade em que todos aprendem a ler, apenas aqueles que apresentam genes suscetíveis se tornam míopes.
Assim, quanto mais poderoso o fator ambiental -no caso, a leitura-, tanto mais, e não menos, os genes parecem ser importantes. A miopia é mais passível de ser "herdada" numa sociedade alfabetizada do que em uma em que o nível de instrução é baixo, assim como o QI [quociente de inteligência] é mais passível de ser herdado numa sociedade com alto grau de instrução do que numa com baixo nível de escolaridade. Logo, é muito mais esclarecedor pensar em genes como mecanismos da natureza humana do que enxergá-los como causadores dela. Eles são engrenagens, não deuses.
Em seu livro recente "Freedom Evolves" [A Liberdade Evolui], Daniel Dennett argumenta que os organismos podem, por meio da evolução, adquirir a capacidade de evitar a gordura. A capacidade de sair do caminho de um predador, de pressentir o perigo, de imaginar o futuro, de fazer uma pergunta a alguém ou de inventar vacinas são todas, nesse sentido, diferentes graus de liberdade do inevitável.
Visto dessa perspectiva, possuir um gene FOXP2 que nos permite aprender a linguagem não restringe nosso livre-arbítrio, mas o aumenta. Até mesmo a própria ciência amplia o livre-arbítrio. Saber que você possui um instinto permite que você decida se vai dominar esse instinto. Quanto mais aprendermos sobre o genoma, mais liberdade vamos encontrar e conquistar.

Matt Ridley é autor do livro "Nature via Nurture" (editora Fourth Estate, 2003). Texto publicado originalmente na revista "New Scientist"
Tradução de Clara Allain


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