São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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+ Marcelo Leite

Um outro muro


Seria o escopo da ciência incompatível com outras perspectivas de valores?

Hugh Lacey é um filósofo da ciência australiano que trabalha nos EUA, mas também por aqui (na USP). Seus fãs tupiniquins aprenderam a admirá-lo por razões acadêmicas e humanas, entre elas a destreza no manejo da lógica contra a injustiça social. Se ele investir contra o muro que separa ciência de religião, pense antes de reagir.
Lacey encaminhou uma defesa do "pluralismo" advogado pela ex-ministra do Meio Ambiente no ensino de ciências e atacado aqui há coisa de um mês, no texto "O criacionismo de Marina". Pluralismo sempre é bom. Não, contudo, se criar mais confusão nas poucas e deficientes aulas de ciência para nossos meninos.
A doutrina criacionista e a versão pseudocientífica do "design inteligente" (DI) não se qualificam nem para uma discussão racional na sala de ciências. Falta-lhes a capacidade de produzir afirmações sobre fenômenos que possam ser corroboradas ou negadas por fatos observáveis. Se for para evidenciar essa deficiência, não há problema em debater criacionismo e DI nas aulas de ciências.
Não é esse, porém, o objetivo de quem defende o pluralismo. Os professores de ensino de ciências também não parecem, na média, capacitados a conduzir esse debate sem aumentar o desconcerto reinante.
A defesa do pluralismo em ciência por Lacey vai muito além disso. Ela se encontra muito bem articulada em seu artigo "The Interplay of Scientific Activity, Worldviews and Value Outlooks" (a interação entre atividade científica, visões de mundo e perspectivas de valor), publicado em agosto de 2007 no periódico especializado "Science and Education".
Simplificando o argumento exposto em 22 páginas, Lacey deplora o sequestro da pesquisa científica atual pelo materialismo, definido como a metafísica inconfessada por trás da valorização do progresso tecnológico.
Argumenta que tal valor não é inerente ao escopo da ciência. De fato não é. Entendido dessa maneira, o materialismo é inseparável do que Lacey chama de "descontextualização": os fatos abordáveis pela pesquisa científica devem ser desprovidos de valores ou quaisquer significados associados com a vida, a cultura ou a época das pessoas. É a condição para que o conhecimento permita controlar e manipular a natureza, vale dizer, gerar aplicações tecnológicas.
Não há dúvida de que essa é a visão predominante sobre a ciência, dentro e fora das universidades. Sob esse ângulo, as humanidades não chegam a ser ciências, pois os fatos que lhe são relevantes vêm contaminados na origem por motivações, interesses e intenções. Mas seria o escopo da ciência incompatível com outras perspectivas de valores?
Lacey diz que não. Ele cita como valor alternativo -e em certa medida contraditório com o progresso tecnológico- a noção de sustentabilidade.
Pode-se pensar também em solidariedade, inclusive entre gerações. Programas inteiros de pesquisa se erguem a partir dessas perspectivas, e nem por isso são menos científicos.
Se você acha que não, pare para pensar nos milhares de estudos -de meteorologia a economia - sobre a mudança do clima. Sem o princípio da precaução, não teriam muita razão de ser. As incertezas são ainda enormes, dada a complexidade do sistema climático global.
Só a percepção política de que as eventuais consequências seriam catastróficas justifica gastar bilhões, hoje, para investigar meios de livrar nossos filhos e netos. Marina Silva e sua religiosidade, neste caso, estão do lado do progresso.


MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).

Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).

E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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