São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Fantasma" de Einstein ainda cerca física

Gênio que revolucionou a ciência no início do século passado aparece como arrogante e sarcástico em nova biografia

Correspondências do cientista reveladas somente em 2006 ajudam a compor um novo perfil em obra do jornalista Walter Isaacson

Esther Bubley/Getty Images
O físico em caminhada na Universidade Princeton (EUA), que o abrigou até sua morte, em 1955


FLÁVIO DE CARVALHO SERPA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Niels Bohr, um dos pioneiros da teoria da mecânica quântica, que explica as forças que regem o mundo das partículas, não agüentava mais ouvir Albert Einstein repetindo toda hora sua famosa tirada: "O Senhor Deus não joga dados". Era uma contestação aos princípios probabilísticos e estatísticos da nova física, que o criador da teoria da relatividade nunca engoliu até o fim de sua vida. Num seminário internacional, Bohr resolveu fazer troça: "Einstein, pare de ficar dizendo o que Deus deve fazer".
O sarcasmo é uma pequena amostra da extensão da revolução na ciência desencadeada por Einstein, que envolveu até especulações sobre como funcionaria a mente de Deus, a criação do Universo e seu fim inexoravelmente previsível dali para frente. Mais de cem anos depois das descobertas do maior gênio do século 20, muita gente ainda tenta descobrir como funcionava sua mente.
Foi uma nova leva de cartas de parentes de Albert Einstein, mantidas em sigilo até o ano passado, que inspirou o jornalista Walter Isaacson, ex-editor-chefe da revista "Time" e diretor da CNN e autor de biografias de grande sucesso, como a de Benjamin Franklin.
Em "Einstein, sua Vida, seu Universo", na lista dos mais vendidos nos EUA, ele também tenta desvendar os enigmas da mente do físico e suas implicações para o mundo moderno.
A expectativa quanto a essas cartas pessoais era enorme, especialmente porque os executores dos arquivos de Einstein já haviam proibido até mesmo seu filho Hans Albert de publicar algumas cartas herdadas de sua mãe Mileva Maric, a primeira mulher do gênio.
Mas esses papéis inéditos acabaram sendo a parcela mínima do valor e do conteúdo do catatau de 656 páginas. Para explicar o trabalho de Einstein, Isaacson contou com a ajuda e o endosso do físico teórico Brian Greene (autor de "O Universo Elegante") e do prêmio Nobel Murray Gell-Mann, descobridor dos quarks, os tijolos básicos da matéria.

Dívida com o passado
Uma medida do empenho do autor em entender o que escreveria é que ele tomou lições de cálculo tensorial -uma ferramenta matemática que faz tipos diferentes de geometria a conversarem entre si. Isso foi algo que o próprio Einstein teve de fazer para formular a teoria da relatividade geral.
Poucas biografias populares mencionam essa dívida de Einstein com os gênios do cálculo tensorial, os italianos Gregório Ricci-Curbastro e Tullio Levi-Civita, a matemática criada por eles está na raiz da Relatividade Geral, a teoria de Einstein que explica a força da gravidade. A grande sacada da teoria foi considerar a gravidade e a aceleração equivalentes -uma intuição física. Mas o trabalho só foi para frente com as ferramentas dos italianos.
O trabalho de Isaacson equilibra bem detalhes da vida pessoal e explicações sobre as teorias criadas por Einstein. Não foi uma tarefa fácil. Além dos documentos liberados só no ano passado pela Universidade Hebraica, Isaacson teve de garimpar matéria-prima no Projeto de Documentos de Einstein, concentrada no Instituto de Tecnologia da Califórnia.
Dez livros de cartas e escritos de Einstein desde sua juventude até os 20 anos já foram editados, mas possivelmente nenhuma grande novidade ou segredo vai emergir do material não revirado até agora.

Tudo não é relativo
O grande desafio era desfazer mitos em torno da vida e obra do gênio alemão. Começando por aí -Einstein sempre renegou a Alemanha, antes mesmo do nazismo torná-la intragável para os judeus. Ele também cansou de desmentir a afirmação até hoje corrente de que sua teoria torna tudo relativo. Na verdade, lembra Isaacson, a teoria de Einstein procura justamente as invariâncias e dá um valor absoluto, não relativo a nada, para a velocidade da luz.
O mito de que Einstein tenha sido mau aluno de matemática também é refutado. Na verdade Einstein volta e meia contestava professores e autoridades com arrogância e insolência na juventude. Um exemplo foi a reação que ele teve ao físico Paul Drude, que não lhe deu retorno sobre uma observação que ele tinha feito a um erro cometido por Drude em artigo. Einstein prometeu "nunca mais dar atenção a gente desse tipo". E complementou: "em vez disso vou atacá-los impiedosamente nas publicações, que é o que eles merecem".
As relações pessoais do gênio nessa época também destoam radicalmente da mitológica foto com a língua para fora. Se ele foi bonzinho na velhice, na juventude era uma peste.
Esse desagradável traço da personalidade de Einstein fascinou Isaacson. "Precisamos alimentar, nas nossas escolas, o desejo de fazer perguntas, de desafiar os dogmas e de pensar diferente", explicou o autor à Folha por e-mail. "Às vezes parece que forçamos os garotos ao conformismo. Devemos é celebrar a vontade de desafiar o pensamento convencional."
O autor crê que esses traços de personalidade poderiam salvar os EUA frente ao desafio econômico chinês. "Nessa nova era de globalização a criatividade vai ser premiada", disse. "Não vamos vencer com o ensino rotineiro, mas sim imaginando coisas novas. É o que Einstein nos inspira a fazer."

Bússola mágica
A curiosidade do físico parece ter sido sempre uma virtude sua. Um episódio apontado pelo próprio Einstein como um momento de estalo sobre suas aptidões foi quando ele ganhou de presente uma bússola. Tinha entre quatro e cinco anos e estava doente. Ele lembra que ficou tão excitado com os poderes misteriosos da agulha que se movia influenciada por forças ocultas que começou a tremer. "Posso ainda me lembrar que essa experiência me marcou profundamente", escreveu.
Depois, logo que aprendeu a ler passou a consumir vorazmente fascículos de divulgação científica para jovens. Aos 15 anos já dominava o cálculo integral. É inegável que Einstein nascera também em uma família culta e antenada com o progresso científico e tecnológico. O pai e um tio dele se aventuraram a construir geradores de eletricidade, mas eram maus negociantes e faliram.
O primeiro emprego de Einstein seria definitivo para sua carreira futura. Não era bem o que ele queria -em vez de um posto na universidade, ele foi parar no escritório de patentes da Suíça-, mas foi isso que lhe permitiu mergulhar nas mais avançadas tecnologias da época. Especialmente na questão da sincronização dos horários de trens, que o deixou a poucos passos para a constatação da relatividade do espaço-tempo.

Rumo à descoberta
"Acho que Einstein teve a sorte de estar num escritório de patentes em vez de servir como assistente na academia tentando agradar professores seniores e ensinando a física convencional. Como examinador de patentes ele tinha de visualizar realidades físicas sob conceitos científicos", escreve Isaacson.
"Ele conseguia montar equações complexas; contudo, mais importante, ele sabia que a matemática é a linguagem usada pela natureza para descrever suas maravilhas", diz. "Por isso conseguia visualizar o modo como as equações eram refletidas na realidade -como as equações dos campos eletromagnéticos descobertas por James Maxwell, por exemplo, iriam se manifestar a um menino que viajasse ao lado de um raio de luz. Como ele declarou: "A imaginação é mais importante que o conhecimento"."
Mas esses ensinamentos de Einstein podem levar a um beco sem muita saída no mundo moderno. "É importante estimular a individualidade", dizia o físico, "pois somente o indivíduo pode produzir idéias novas." Mas hoje a ciência é obra de equipes enormes conectadas instantaneamente pela internet. É mais um trabalho cooperativo do que o produto de estalos geniais. E muitos dos obstáculos e desafios da física moderna dependem de laboratórios enormes e bilionários.
Esta biografia é uma ótima introdução aos avanços da ciência no início do século passado e dá conta didaticamente da proposta. O leigo pode entender como foi concebida a relatividade e os embates de Einstein contra a mecânica quântica, que ele também ajudou a construir, mas renegou furiosamente depois.

Briga quântica
Para o leitor avançado, no entanto, Isaacson fica devendo algumas contextualizações. A busca de Einstein por uma teoria que unifique a relatividade e a mecânica quântica -e abolisse o famoso acaso dos lances de dados- é muito parecida com a perseguida pelos físicos teóricos da teoria de cordas.
Isaacson falha ao encarar a batalha pessoal de Einstein contra a mecânica quântica como uma causa perdida e superada na ciência moderna. Não é bem assim. Muitas correntes teóricas ainda perseguem a revisão dos fundamentos de física, incluindo os adeptos das cordas como Brian Greene.
Finalmente, Isaacson não ressalta que da briga com os teóricos quânticos Einstein produziu um de seus mais significativos trabalhos, que só agora começa a dar frutos. Sua contestação da mecânica quântica incluía a critica a um tipo de ligação entre partículas separadas no espaço -hoje conhecida na física como emaranhamento-, que ele chamou de "ação fantasmagórica".
Como uma bomba de efeito retardado, o emaranhamento, formulado ainda sem este nome por Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen em 1935, é hoje um dos fundamentos da computação quântica, tecnologia ainda incipiente que promete revolucionar a ciência nas próximas décadas. A idéia de partículas separadas pela distância manterem estados relacionados está por trás dos qubits, os bits (unidades mínimas de informação) de computadores quânticos. Quando essas máquinas quânticas começarem a funcionar, Einstein vai merecer mais um prodigioso galardão póstumo.


LIVRO - "Einstein - sua Vida, seu Universo"
Walter Isaacson; Companhia das Letras; 656 págs., R$64



Texto Anterior: Tecnologia em dúvida: "Enterrar" carbono ainda não é uma opção factível, diz Boer
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.