São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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Ciência em Dia

Conservadorismo e células-tronco

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Em 5 de dezembro, esta coluna saudou como boa nova a proposta de um cientista americano conservador, William Hurlbut, da Universidade Stanford e do Conselho Presidencial de Bioética dos EUA, para contornar as objeções éticas à pesquisa com células-tronco embrionárias. Outros pesquisadores seus compatriotas, que apostam todas as fichas nessas células-curinga, não gostaram da proposta e partiram para desancá-la.


Proposta para eliminar o dilema ético gera reação de outros cientistas


Não são cientistas quaisquer. Douglas Melton, George Daley e Charles Jennings dirigem o Instituto de Células-Tronco da Universidade Harvard, e seu comentário saiu na prestigiada "New England Journal of Medicine" (www.nejm.org) sob o título "Transferência Nuclear Modificada na Pesquisa de Células-Tronco - Uma Proposta Falha". Melton ficou conhecido por criar e distribuir linhagens de células-tronco embrionárias humanas (CTEH, para simplificar) como as que vieram aportar no laboratório de Lygia da Veiga Pereira, da USP.
CTEH são obtidas de um embrião em estágio de blastocisto (com uma centena de células), o que implica sua destruição. Para ser manipulado, o embrião é produzido fora do corpo, seja por fertilização "in vitro", seja por clonagem (fusão de célula adulta com um óvulo do qual se retirou o núcleo, daí a "transferência nuclear" do título do artigo).
Adversários do aborto são contrários a essa manipulação, por razões óbvias. Hurlbut tentou introduzir alguma flexibilidade na controvérsia, propondo que a célula adulta doadora de DNA na clonagem tenha um de seus genes, o CDX-2, desativado. Como ele está envolvido na formação do trofoderma (esfera de células que dá origem à placenta), sua inativação impediria o desenvolvimento posterior de um ser humano normal. Em resumo, um embrião que não seria embrião de nada.
Melton e companhia responderam com um endurecimento. Além de assinalar que se trata de uma hipótese teórica, apontam a óbvia fragilidade da "solução" de Hurlbut: até que a cópia ineficaz do gene seja mobilizada no desenvolvimento embrionário e provoque seu fracasso, o embrião geneticamente modificado é tão (pouco) "humano" quanto qualquer outro. Modificar o CDX-2 não seria eticamente diferenciável de romper a esfera de células, nem de obter as cobiçadas células de mórulas, embriões mais jovens que blastocistos (outra alternativa, noticiada na semana passada na Folha por Salvador Nogueira).
O mais estranho é que os três de Harvard se posicionam contra... mais pesquisas. Pois isso era o que Hurlbut propunha: verificar se a técnica de transferência nuclear modificada daria certo com células da espécie humana. Melton, Daley e Jennings alegam que isso desviaria recursos para uma alternativa que "não oferece benefício científico" e "diminui a probabilidade de sucesso" das outras pesquisas -as deles.
Parece incrível que não tenham se dado conta de que é o mesmo argumento usado contra a pesquisa com CTEH, ainda uma simples promessa, e em favor do potencial terapêutico das células-tronco adultas (que não implicam destruir embriões).

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