São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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CIÊNCIA
Médicos justificam emprego de substâncias inócuas, em vez de remédios, em estudos sobre tratamentos de Aids
Uso de gestantes-cobaias é aprovado


DANIELA SANDLER
da Reportagem Local

O uso de placebos (substâncias inócuas) em vez de medicamentos em pesquisas com gestantes portadoras de HIV foi considerado eticamente correto por um consenso entre pesquisadores, médicos e administradores de saúde nos EUA.
Segundo a declaração desses profissionais, publicada no sábado na revista médica britânica "The Lancet", o procedimento, que causou controvérsia, é justificado "em certas circunstâncias".
Outros médicos acham que nada justifica que pessoas recebam substâncias inócuas quando a medicação para tratá-las é conhecida.
O debate que motivou a declaração começou em 1997, quando a revista norte-americana "The New England Journal of Medicine" publicou textos condenando o uso de placebos em testes feitos em países subdesenvolvidos.

"Única alternativa"
Os testes foram feitos na Tailândia, em Burkina Fasso e na Costa do Marfim, e seus resultados foram publicados na mesma edição da revista "The Lancet" em que aparece a declaração.
Nesses testes, os pesquisadores queriam saber se o uso de zidovudina (conhecida pelo nome comercial de AZT) por curtos períodos reduziria o risco de o recém-nascido ser infectado pelo HIV durante o parto.
Em outras palavras, queriam saber se pouco AZT é melhor do que nenhum AZT. Para isso, escolheram, ao acaso, um grupo de controle entre as gestantes soropositivas estudadas. Esse grupo recebeu placebo -substâncias sem efeito.
Os pesquisadores concluíram que o tratamento com AZT por uma média de 20 dias reduziu em 50% o risco de a mãe transmitir HIV ao filho.
A cientista norte-americana Catherine Wilfert, co-autora da declaração favorável ao placebo, disse à Folha que não havia outra maneira de provar a eficácia do tratamento curto, e que esse tratamento é a única alternativa em países pobres, onde o governo não tem como fornecer medicamentos por períodos mais longos.
A pesquisadora norte-americana Marcia Angell havia argumentado na "New England", em 1997, que testes que comparem dois tratamentos só são justificados quando não há certeza sobre qual procedimento é melhor.
Para ela, o placebo só é justificado quando não existe nenhum tratamento efetivo conhecido, apenas tratamentos ainda não-testados.
O médico Marco Segre, membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, disse à Folha que um benefício coletivo obtido por pesquisas com placebo não pode prevalecer sobre a vida do indivíduo.
Para Cláudio Cohen, professor de bioética da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), "se a pesquisa implica risco de vida, deixa de ser ética".
Ele chamou a atenção para o fato de os testes terem sido feitos em países subdesenvolvidos. "Em países desenvolvidos, você não pode fazer pesquisa científica sem passar por comissões de ética."
Segundo Pedro Paulo Monteleone, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, uma pesquisa do gênero não seria aprovada no Brasil.
Guido Levi, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, disse que as gestantes dos países onde foram feitas as pesquisas não teriam recebido nada se não fossem os estudos. "Não se pode dizer rigidamente que a pesquisa seja antiética. É antiético que, em alguns lugares, ela seja a única opção."


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