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Micro/Macro
Fio, latas e a unificação das forças
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Imagine uma formiga fadada a caminhar sobre uma linha de náilon, dessas
que usamos para pescar. Ela não pode
pular fora da linha, só pode andar para
frente ou para trás. A linha tem um comprimento enorme, muito maior do que o
da formiga. A coitada anda, anda e não
chega jamais ao fim da linha. Seu "universo" tem uma dimensão e é infinito.
Essa formiga infeliz tinha uma prima
que também se viu fadada a caminhar
para sempre em um universo unidimensional. Só que esse era na forma de um
círculo. A formiguinha descobriu isso ao
notar que retornava sempre ao mesmo
ponto, que ela marcou com um giz de
formiga. Ela deu sorte porque o raio de
seu "universo" era pequeno o suficiente
para que ela cobrisse sua circunferência
em tempo hábil. Se o raio fosse muito
grande, ela jamais chegaria ao seu ponto
de partida. Isso aconteceu, segundo os
anais das formigas geômetras, com outra
prima, essa a mais esperta de todas. Ela
também queria saber se seu universo era
infinito. Após usar o giz, andou por um
bom tempo e não voltou ao seu ponto de
partida. Ela então resolveu apontar um
laser na direção da linha. E qual não foi
sua surpresa ao ver a luz bater em seu
calcanhar (supondo, claro, que formigas
tenham calcanhar). Esse universo é fechado e sem fronteiras, já que qualquer
ponto sobre o círculo é equivalente.
Já uma família de besouros teve outro
destino. Eles tinham de andar na superfície de uma lata de palmitos, tão alta que
eles nunca chegariam no topo. Os besouros ficavam na mesma área ocupada pelo
rótulo da lata. Esse "universo" é bidimensional: com dois números, a altura e
a posição angular na lata, você localiza o
besouro. (Esses besouros são achatados
como uma ameba). Ele é semelhante ao
universo fechado das formigas em uma
das suas direções (em torno da lata), mas
é infinito na outra (sua altura). Portanto,
o universo com duas dimensões dos besouros mistura os dois tipos de universo
unidimensional das formigas.
Por incrível que pareça, esse universo
bidimensional em forma de "lata de palmito" foi o primeiro modelo geométrico
usado por físicos para construir uma teoria unificada dos campos gravitacional e
eletromagnético. Em sua teoria da relatividade geral, proposta em 1916, Einstein
mostrou que a força gravitacional está ligada à geometria do espaço: a presença
de uma massa deforma a geometria à sua
volta, causando desvios nos movimentos
dos corpos em sua vizinhança. Na época,
sabia-se da existência de uma outra força
de longo alcance, a eletromagnética, que
caía com o quadrado da distância, como
a gravidade. Já que a relatividade propunha a geometrização da força gravitacional, por que não incluir o eletromagnetismo nesse esquema?
Em 1921, o físico alemão Theodor Kaluza (e mais tarde também Oskar Klein)
propôs uma unificação das duas forças
em um universo em cinco dimensões. A
teoria da relatividade havia mostrado
que a arena dos fenômenos físicos é um
espaço quadridimensional (o espaço-tempo). Kaluza adicionou mais uma dimensão, mas com um detalhe: ela tinha
de ser perpendicular ao espaço-tempo
da relatividade e circular, como o universo fechado das formigas! Esse universo
teria uma geometria semelhante ao universo dos besouros, com as quatro dimensões normais se estendendo ao infinito (a altura da lata) e a dimensão extra
sendo fechada (como o círculo da lata).
A teoria de Kaluza mostra que o raio da
dimensão extra está ligado à carga do
elétron, a unidade básica de carga elétrica! A teoria reproduz a gravidade e o eletromagnetismo quando "vista" em quatro dimensões, ou seja, quando o raio da
lata é muito menor que sua altura. Para
nós, a dimensão extra é invisível, como
se a lata afinasse até virar um fio. Essas
idéias arrojadas e elegantes estão no coração das teorias modernas de unificação das forças.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"Retalhos Cósmicos".
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