São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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Micro/Macro

Fio, latas e a unificação das forças

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Imagine uma formiga fadada a caminhar sobre uma linha de náilon, dessas que usamos para pescar. Ela não pode pular fora da linha, só pode andar para frente ou para trás. A linha tem um comprimento enorme, muito maior do que o da formiga. A coitada anda, anda e não chega jamais ao fim da linha. Seu "universo" tem uma dimensão e é infinito.
Essa formiga infeliz tinha uma prima que também se viu fadada a caminhar para sempre em um universo unidimensional. Só que esse era na forma de um círculo. A formiguinha descobriu isso ao notar que retornava sempre ao mesmo ponto, que ela marcou com um giz de formiga. Ela deu sorte porque o raio de seu "universo" era pequeno o suficiente para que ela cobrisse sua circunferência em tempo hábil. Se o raio fosse muito grande, ela jamais chegaria ao seu ponto de partida. Isso aconteceu, segundo os anais das formigas geômetras, com outra prima, essa a mais esperta de todas. Ela também queria saber se seu universo era infinito. Após usar o giz, andou por um bom tempo e não voltou ao seu ponto de partida. Ela então resolveu apontar um laser na direção da linha. E qual não foi sua surpresa ao ver a luz bater em seu calcanhar (supondo, claro, que formigas tenham calcanhar). Esse universo é fechado e sem fronteiras, já que qualquer ponto sobre o círculo é equivalente.
Já uma família de besouros teve outro destino. Eles tinham de andar na superfície de uma lata de palmitos, tão alta que eles nunca chegariam no topo. Os besouros ficavam na mesma área ocupada pelo rótulo da lata. Esse "universo" é bidimensional: com dois números, a altura e a posição angular na lata, você localiza o besouro. (Esses besouros são achatados como uma ameba). Ele é semelhante ao universo fechado das formigas em uma das suas direções (em torno da lata), mas é infinito na outra (sua altura). Portanto, o universo com duas dimensões dos besouros mistura os dois tipos de universo unidimensional das formigas.
Por incrível que pareça, esse universo bidimensional em forma de "lata de palmito" foi o primeiro modelo geométrico usado por físicos para construir uma teoria unificada dos campos gravitacional e eletromagnético. Em sua teoria da relatividade geral, proposta em 1916, Einstein mostrou que a força gravitacional está ligada à geometria do espaço: a presença de uma massa deforma a geometria à sua volta, causando desvios nos movimentos dos corpos em sua vizinhança. Na época, sabia-se da existência de uma outra força de longo alcance, a eletromagnética, que caía com o quadrado da distância, como a gravidade. Já que a relatividade propunha a geometrização da força gravitacional, por que não incluir o eletromagnetismo nesse esquema?
Em 1921, o físico alemão Theodor Kaluza (e mais tarde também Oskar Klein) propôs uma unificação das duas forças em um universo em cinco dimensões. A teoria da relatividade havia mostrado que a arena dos fenômenos físicos é um espaço quadridimensional (o espaço-tempo). Kaluza adicionou mais uma dimensão, mas com um detalhe: ela tinha de ser perpendicular ao espaço-tempo da relatividade e circular, como o universo fechado das formigas! Esse universo teria uma geometria semelhante ao universo dos besouros, com as quatro dimensões normais se estendendo ao infinito (a altura da lata) e a dimensão extra sendo fechada (como o círculo da lata).
A teoria de Kaluza mostra que o raio da dimensão extra está ligado à carga do elétron, a unidade básica de carga elétrica! A teoria reproduz a gravidade e o eletromagnetismo quando "vista" em quatro dimensões, ou seja, quando o raio da lata é muito menor que sua altura. Para nós, a dimensão extra é invisível, como se a lata afinasse até virar um fio. Essas idéias arrojadas e elegantes estão no coração das teorias modernas de unificação das forças.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Retalhos Cósmicos".


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