São Paulo, domingo, 09 de maio de 2010

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+Marcelo Leite

Águas turvas


Disparidade entre cifras sobre áreas de conservação no país requer reflexão

Por uma dessas coincidências sintomáticas que a época produz, duas frases que abrem a reportagem de capa da presente edição do caderno Mais! -"No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é" e "Só é índio quem se garante"- estão no centro de um bate-boca entre seu autor, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, e a revista "Veja".
A abertura foi escrita antes do quiproquó, mas pouco importa. Se ela e todo o texto sobre educação indígena forem recebidos como tomada de posição, tanto melhor.
De qualquer maneira, é instrutivo ler a reportagem da revista que deu origem a tudo, assim como as réplicas e tréplicas que se seguiram (veja links no blog Ciência em Dia). Permite vislumbrar a profundidade dos preconceitos anti-indígenas e da estridência jornalística que turvam essa vertente de discussão no país.
Preconceitos, estridência, falácias, invenções e estatísticas, aliás, transformam todo o debate público numa bacia amazônica de turbidez. Não é privilégio da questão indígena. Tome a usina hidrelétrica de Belo Monte.
Ou o tema explosivo da disponibilidade de terras para o agronegócio, epicentro da indigitada reportagem da revista "Veja".
"Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil", afirmam seus autores, sem citar a fonte. "Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional."
É provável que a origem omitida seja o estudo "Alcance Territorial da Legislação Ambiental e Indigenista", encomendado à Embrapa Monitoramento por Satélite pela Presidência da República e encampado pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA, leia-se senadora Kátia Abreu, DEM-TO). Seu coordenador foi o então chefe da unidade da Embrapa, Evaristo Eduardo de Miranda. A estimativa terminou bombardeada por vários especialistas, inclusive do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Nesta semana veio à luz, graças às repórteres Afra Balazina e Andrea Vialli, mais um levantamento que contradiz a projeção alarmante. O novo estudo foi realizado por Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), em colaboração com a Universidade de Chalmers (Suécia).
Para Miranda, se toda a legislação ambiental, fundiária e indigenista fosse cumprida à risca, faltariam 334 mil km2 -4% do território do Brasil- para satisfazer todas as suas exigências. O valor dá quase um Mato Grosso do Sul de deficit.
Para Sparovek, mesmo que houvesse completa obediência ao Código Florestal ora sob bombardeio de ruralistas, sobraria ainda 1 milhão de km2, além de 600 mil km2 de pastagens poucos produtivas usadas para pecuária extensiva (um boi por hectare). Dá 4,5 Mato Grosso do Sul de superavit.
A disparidade abissal entre as cifras deveria bastar para ensopar as barbas de quem acredita em neutralidade científica, ou a reivindica. Premissas, interpretações da lei e fontes de dados diversas decerto explicam o hiato.
Mas quem as examina a fundo, entrando no mérito e extraindo conclusões úteis para o esclarecimento do público e a tomada de decisão? Faltam pessoas e instituições, no Brasil, com autoridade para decantar espuma e detritos, clarificando as águas para que se possa enxergar o fundo. De blogueiros e bucaneiros já estamos cheios.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br)
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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