São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

Próximo Texto | Índice

+ ciência

Estudo estabelece elo entre o peso de objetos de arremesso e o desenvolvimento dos hominídeos

PEDRADA NA EVOLUÇÃO

Associated Press - 10.out.2000
Palestino arremessa pedra com a ajuda de uma funda durante a nova Intifada, o levante da população civil contra a ocupação israelense


Reinaldo José Lopes
Free-lance para a Folha

A época é o Plioceno, 3 milhões de anos atrás. O lugar, uma savana da África Oriental. O bando de primatas (todos estranhamente eretos) emerge da orla da floresta e perscruta, ressabiado, a paisagem aberta. O receio quase vira pânico quando um dente-de-sabre (Megantereon cultridens) investe contra um dos membros que se desgarrou, mas a sensação de desespero passa rápido. Uma saraivada de pedras redondas, de uns 500 gramas, escolhidas com cuidado e arremessadas pelos machos do bando, faz o felino mudar de idéia rápido e dar meia-volta. Corta para uma quadra de handebol masculino do século 21. De mão em mão, a bola -pesando uns 500 gramas- vai avançando em direção ao gol adversário até ir para o fundo da rede, encerrando o jogo e pondo os primatas dentro e fora da quadra (ainda eretos, só um pouco menos peludos) a urrar de satisfação. O leitor deve ter percebido que os personagens de ambos os eventos manipulam objetos que, embora separados por um abismo tecnológico e cultural, compartilham formato e massa parecidos. Por puro acaso, dirão alguns. Mas não é isso o que pensa o engenheiro de transportes britânico Alan Cannell, 52 anos, há 30 radicado no Brasil e estudioso (até pouco tempo atrás, amador) de arqueologia e evolução. Cannell acaba de inaugurar sua carreira de pesquisador com um trabalho publicado na revista científica "Journal of Archaelogical Science" (www.academicpress.com/jas), tentando provar que o gosto por objetos arremessáveis de meio quilo está longe de ser aleatório, refletindo um padrão impresso na mente humana pela seleção natural e uma estratégia de sobrevivência que concedeu aos hominídeos o uso de ferramentas. O trabalho do britânico, nascido na pequena ilha de Man, entre a Escócia e a Irlanda, tentou casar dados experimentais com o registro arqueológico para explicar, entre outras coisas, a função das pedras arredondadas conhecidas como "manuports", que costumam aparecer em boa quantidade nos sítios arqueológicos africanos habitados pelos mais remotos ancestrais da humanidade, os primatas da linhagem Australopithecus, e pelo Homo habilis -primeiro representante do gênero ao qual pertence o homem e considerado o primeiro criador de ferramentas, daí o habilis em seu nome. "Um belo dia acordei com uma convicção: a de que o lançamento de pedras foi uma estratégia evolutiva humana", conta Cannell. "E isso deveria estar relacionado com o tamanho do ombro e do braço, o que geraria um tamanho-padrão de pedras", diz o pesquisador, que por muito tempo não teve oportunidades para refinar a teoria que estava nascendo. A ocasião veio quando Cannell viajou a trabalho para Nairóbi, no Quênia, e visitou o museu da Fundação Louis Leakey, que abriga uma respeitável coleção de "manuports" oriundos da garganta de Olduvai, na Tanzânia, famosa por seus fósseis e instrumentos de hominídeos primitivos. "Infelizmente, como é um museu, você não pode tocar nas pedras", conta o engenheiro. A saída foi usar o tradicional método brasileiro do "olhômetro" (que ganhou até uma menção no artigo de Cannell, com o mais refinado nome de "eye-gauge"). "Não dava para saber o peso, mas era possível sentir um padrão de tamanho preferido", afirma. Encorajado por esse golpe de vista, o pesquisador começou a se debruçar sobre dados existentes a respeito da massa dos "manuports" em diversos sítios arqueológicos, enquanto procurava atacar o outro lado do problema: afinal, se a preferência por determinado tamanho de pedra era instintiva, ela deveria ter deixado marcas em humanos de hoje.

Arremesso evolutivo
Para tentar provar isso, Cannell reuniu uma diversificada coleção de pedras arredondadas (com 180, 380, 400, 480, 560, 950 e 1.900 gramas). Pintadas de amarelo, elas foram apresentadas a cinco homens jovens, que deviam escolher a sua "pedra ideal": aquela capaz, de acordo com eles, de causar o impacto máximo quando arremessada num alvo a dez metros de distância. Todos escolheram a mesma pedra -a de 480 g- para o primeiro arremesso.
O lançamento da suposta "pedra ideal", bem como o das outras, foi filmado e a velocidade com que elas atingiram o alvo foi estimada. E, surpreendentemente, parece que o instinto de lançador hominídeo ajudou os voluntários: a pedra de quase meio quilo foi responsável por gerar a maior energia de impacto.
Os dados ganharam um reforço inesperado com a análise de amostras de rocha coletadas por geólogos e exibidas em museus da Universidade Federal do Paraná, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Museu Geológico do Zimbábue: as pedras, escolhidas ao acaso, tendiam a se agrupar entre os 400 g e 500 g (responsáveis por quase metade das amostras). A resposta, para Cannell, é que geólogos em trabalho de campo escolhem "pedras de arremesso ideais" instintivamente.
Os exemplos, diz o pesquisador, não param por aí: o peso oficial da bola de handebol masculino (455 g); as granadas usadas pelo exército norte-americano (de 19 modelos, nada menos que 9 pesam cerca de 480 g); e até as mais antigas lanças do mundo, encontradas na Alemanha, com 400 mil anos de idade e pesando entre 500 e 600 gramas. Mesmo tendo sido feitas pelo Homo heidelbergensis, um sujeito de pesada estrutura muscular e óssea que teria dado origem aos neandertais, as lanças chegam bem perto do padrão moderno.
Cannell diz que o peso estratégico de todos esses objetos arremessáveis se relaciona com a raiz cúbica do comprimento do braço e do ombro. Aplicando esse modelo matemático às mulheres e levando em consideração o dimorfismo sexual, ou seja, a diferença média de tamanho entre macho e fêmea na espécie humana, ele inferiu que o peso ideal para uma pedra lançada por mãos femininas giraria em torno de 330 gramas. Dito e feito: experimentos semelhantes aos da "pedra ideal" feitos com mulheres, entre elas dez jogadoras de um time de handebol, chegaram a um valor médio de 332 g, com uma nítida preferência por uma pedra de 310 g, escolhida cinco vezes. Não é por acaso, especula o pesquisador, que a bola de handebol feminina tem uma massa média de 365g.
Os dados de "manuports" encontrados em Olduvai, com idade estimada de 1,8 milhão de anos, parecem confirmar a hipótese de Cannell: embora a massa das pedras varie de 150 g a 690 g, há uma preferência pelas que têm cerca de 400 g, que representa o valor médio da massa dos objetos. Usando o modelo que relaciona tamanho corpóreo com o peso das pedras, Cannell inferiu uma altura de 1,70 m para os usuários dos objetos -altura que, até pouco tempo atrás, pareceria exagerada para hominídeos primitivos, mas que vem sendo confirmada por novos fósseis.
Para Cannell, a teoria, se confirmada, pode mostrar que a humanidade usava instrumentos de pedra como uma estratégia evolutiva há bem mais tempo do que se pensava. Se o Paleolítico, ou Idade da Pedra Lascada, só começou mesmo com as toscas ferramentas do Homo habilis há uns 2,5 milhões de anos, a "Idade da Pedra Escolhida" pode ter se estendido por um período de tempo muito anterior. E o acúmulo de "manuports" com o característico tamanho apontado pela pesquisa ajudaria a indicar com precisão a presença de hominídeos. "Se você encontrar um sítio com características favoráveis, com recursos como um lago ou um rio, esse tipo de "hoarding" [estocagem] das pedras deve acontecer", afirma o britânico.
O pesquisador português João Zilhão, um dos maiores especialistas mundiais em cultura de hominídeos primitivos, considera interessantes as conclusões de Cannell: "Arremessar objetos (incluindo pedras) contra um oponente é um comportamento documentado entre os chimpanzés, pelo que não é de estranhar que ele possa ter existido entre os australopitecos e os primeiros Homo". William Calvin, da Universidade de Washington (EUA), estudioso das primeiras ferramentas humanas, diz que o estudo estabelece bons critérios para estudar os "manuports".
"Eu adoraria ver a análise dele aplicada aos machados de mão [primeiros instrumentos cortantes de pedra]. Suspeito que os "manuports" fossem jogados diretamente, como nos experimentos dele, porque a energia de impacto era importante", diz Calvin. Seja como for, Cannell já sabe qual seu próximo passo: verificar, usando tomografia, se alguma área do cérebro humano é especialmente estimulada por pedras de meio quilo -o que daria mais força a idéia de que, afinal, essa preferência moldou a humanidade.



Próximo Texto: Micro / Macro - Marcelo Gleiser: A misteriosa origem da água
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.