São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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Música no espaço

Geometria de de espaços retorcidos revela a lógica por trás de composições simples ou sofisticadas

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Na última sexta-feira, pela primeira vez em 127 anos de história, a prestigiada revista "Science" abriu espaço para falar de música, um assunto inusitado em meio textos sobre astrofísica e neurofarmacologia. O estudo musical que passou numa das peneiras mais seletivas do mundo científico foi escrito por Dmitri Tymoczko, professor da Universidade de Princeton (EUA). Em três páginas, ele usa geometria para atacar a a questão que permeia o trabalhos de todo compositor. Como encadear bem os acordes e notas numa canção?
A pergunta remete a dois elementos fundamentais da música ocidental: a harmonia, que trata das seqüências de acordes, e o contraponto, a arte de conectar harmonias formando melodias simultâneas. A dificuldade de dominar a interação entre os dois é que nenhum tipo de representação gráfica -como uma partitura- permite enxergar diretamente a sutileza dessa interação.
Em busca de uma solução, Tymoczko recorreu à geometria não-Euclidiana, que lida com espaços retorcidos, nos quais existem coisas bizarras como linhas paralelas tortas. O estudo o permitiu criar diagramas 3-D de representação musical e enxergar coerência onde antes só havia mistério. Para desmistificar a complicação, ainda criou filmes em que um sofisticado prelúdio de Chopin "dança" no espaço (music. princeton.edu/~dmitri). Em entrevista à Folha, Tymoczko fala sobre seu novo trabalho.
 
FOLHA - Seu estudo delimita o espaço no qual a harmonia se situa. Isso o ajuda a compor ou serve apenas como ferramenta de análise?
DMITRI TYMOCZKO -
Como compositor, acho útil entender os princípios gerais sobre os quais a música opera. Todo compositor tem dúzias de truques, cada um oferece a compreensão de uma pequena região do espaço musical. O que é legal sobre os espaços geométricos é que eles podem fornecer um mapa de todos os acordes. De repente, em vez de olhar para uma pequena porção da paisagem musical, podemos ver ela toda. Isso nos mostra que muitos truques de composição -de Chopin, Wagner, Debussy ou Bill Evans- na verdade são intimamente ligados. Isso, espero, pode dar a compositores um novo senso de fluência, uma maior flexibilidade com a linguagem musical. Em vez de emprestar truques de Debussy, podemos usar princípios gerais sobre os quais eles operam. Minha visão sobre análise musical, aliás, é a de que ela é uma ferramenta para "roubar" de outros compositores sem ser flagrado.

FOLHA - Alguns músicos acham que "leis científicas" de composição vão contra o princípio de criatividade. Isso não pode ser uma barreira para o diálogo entre arte e ciência?
TYMOCZKO -
Concordo que regras são feitas para serem quebradas. Não existe obrigação em arte. Uma coisa legal sobre os espaços geométricos que desenvolvi é que eles são bastante gerais. Em seus limites amplos, podem ser usados para representar qualquer música, seja sublime ou ridícula. E eles revelam uma conexão íntima entre harmonia e contraponto, dois princípios musicais que eram tidos como relativamente independentes, mas, ao que parece, são fortemente ligados. Por causa disso, esses espaços nos permitem usar sentenças como: "Se" você quiser que sua música tenha certas propriedades, "então" precisa fazer isso. Para mim, "se" e "então" não são regras, mas diretrizes que ajudam a escrever musica de determinado tipo.

FOLHA - Os padrões que você descrevem se referem apenas a grandes ramos da música ocidental, como erudito, jazz e rock?
TYMOCZKO -
As noções de harmonia e contraponto são idéias essencialmente ocidentais, padrões que datam do século 11 e se estenderam para incluir jazz e outras formas modernas de música. Meu estudo cita exemplos de jazz, Wagner, Debussy e Ligeti, e é possível achar centenas de outros diferentes. Essas idéias, contudo, não se aplicam a toda música. Certas músicas não têm "acordes" no sentido ocidental do termo. Boa parte da música asiática e africana é assim, e muitas canções só têm melodia. Muito do que se faz em rock também não possui muito contraponto. Meus modelos são um pouco inúteis para esses estilos, mas às vezes surpreendem. Em rock é possível ver os mesmos padrões geométricos influenciando o dedilhado de progressões comuns de acordes de guitarra, que surgem da mecânica física do instrumento. E os modelos podem ser úteis se queremos refletir sobre padrões africanos de repetição rítmica -que podem ser modelados como "acordes" no domínio rítmico.

FOLHA - Seu trabalho se apóia em uma geometria extremamente sofisticada. É possível descrevê-lo a um músico não-matemático?
TYMOCZKO -
As idéias envolvidas na verdade são muito simples. A matemática fornece termos sofisticados para um conceito natural e intuitivo que, geometricamente, pode ser descrito como "ligar pontos" no espaço. No ano passado, dei palestras sobre esse material para um público muito variado, e em geral foi bastante fácil comunicar as idéias básicas envolvidas.

FOLHA - Muitos conceitos musicais estão ligados a aspectos físicos e psicológicos da audição humana. Os padrões achados em seu estudo podem ter base neurológica?
TYMOCZKO -
Essa questão é o próximo tema em meu trabalho. Estou elaborando experimentos psicológicos para analisar a relevância que isso tem para a percepção musical.


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