São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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Usina polêmica vai a leilão em setembro

Hidrelétrica de Dardanelos, situada em área considerada prioritária para a conservação, ameaça ecoturismo em MT

Estado deu licença prévia à obra, cujos estudos de impacto ambiental foram criticados por especialistas e contestados por promotor


Fernando Donasci/Folha Imagem
O salto das Andorinhas, a 15 minutos a pé do centro de Aripuanã, que deve ser afetado pela hidrelétrica; no alto, micos-de-cheiro (gênero Saimiri) atravessam estrada perto do salto de Dardanelos

CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL A ARIPUANÃ (MT)

Ao mesmo tempo em que anuncia planos de estimular o ecoturismo, o governo brasileiro condena à morte uma das paisagens mais espetaculares da Amazônia: o conjunto de cachoeiras de Aripuanã, no noroeste de Mato Grosso. O local, considerado pelo Ministério do Meio Ambiente área prioritária para a conservação, deve abrigar uma hidrelétrica cujos estudos ambientais são contestados por especialistas e pelo Ministério Público.
A data da execução já está marcada: em setembro, se tudo correr como desejam a estatal Eletronorte e o governo mato-grossense, a Usina Hidrelétrica Dardanelos será leiloada pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). A licença prévia do empreendimento foi aprovada na surdina pela Assembléia Legislativa de Mato Grosso no dia 23 de maio.
Na melhor das hipóteses, a hidrelétrica descaracterizará a paisagem das cachoeiras das Andorinhas e de Dardanelos, situadas na periferia da cidade, nas quais o rio Aripuanã despenca uma centena de metros.
As quedas d'água são um cenário tão impressionante que valeram a inclusão de Aripuanã no Proecotur, o programa de ecoturismo na Amazônia iniciado em 2000. "Se a hidrelétrica sair, lá acabou", sentencia Allan Milhomens, coordenador do Proecotur no Ministério do Meio Ambiente.
Na pior das hipóteses, a usina de Dardanelos secará as cachoeiras durante parte do ano e levará o ecossistema local ao colapso, extingüindo uma espécie de planta aquática que só existe na zona dos saltos e comunidades de anfíbios que dependem do ciclo natural de cheias e vazantes do rio.
De quebra, acabará com um balneário bastante usado pela população local, o Oásis, e com uma impressionante colônia de andorinhões que faz ninho nos paredões de arenito dos saltos. Isso para produzir energia cara e ineficiente, num local a mais de 500 quilômetros da conexão com o SIN, o sistema nacional de transmissão elétrica.
O pior cenário, por incrível que pareça, é descrito no próprio EIA-Rima (sigla para estudo e relatório de impacto ambiental) da hidrelétrica de Dardanelos, preparado pela Eletronorte e pela construtora Norberto Odebrecht. Dos impactos descritos no relatório, 52 são negativos e 7 são positivos.
Duas análises independentes feitas em 2005, uma por um grupo de especialistas a pedido do Ministério Público de Mato Grosso e outra pela Sema (Secretaria de Estado do Meio Ambiente), apontam uma série de problemas no EIA-Rima. Mesmo considerando que ele "precisa ser complementado", no entanto, a secretaria estadual autorizou a concessão da licença prévia à obra.
"A licença prévia pode ser condicionada ao cumprimento de certas solicitações. Isso é normal", defende Luís Henrique Daldegan, secretário-adjunto da Sema.
"A rigor, pode, mas nunca neste nível", rebate o promotor de Justiça de Meio Ambiente do Estado Gerson Barbosa. Ele é autor de uma ação civil pública pedindo a anulação do EIA-Rima de Dardanelos.
A ação do Ministério Público conseguiu impedir que Dardanelos fosse a leilão em dezembro do ano passado, mas a Eletronorte afirma, agora, que está terminando de cumprir as condições impostas pela Sema para o licenciamento. Barbosa discorda. "A decisão de construir Dardanelos não é técnica, é política. E já foi tomada."

Cascata de problemas
O primeiro problema apontado pelo Ministério Público envolve a própria competência de Mato Grosso para licenciar a hidrelétrica, já que o rio Aripuanã é federal -corta dois Estados-, o que daria ao Ibama, o órgão ambiental federal, essa responsabilidade.
Há conflito com o Ibama também num fato aparentemente ignorado pela Eletronorte: a zona dos saltos foi classificada pelo Ministério do Meio Ambiente como de prioridade "extremamente alta" para a conservação da biodiversidade, e o Ibama estuda a criação, ali, de uma reserva de desenvolvimento sustentável.
Outro ponto nebuloso diz respeito ao valor das linhas de transmissão, que ainda geram debate (leia texto à direita).
Mas a principal confusão é quanto à vazão mínima necessária para fazer funcionar a hidrelétrica e manter as cachoeiras com água. A primeira versão do EIA-Rima fala em 12 metros cúbicos por segundo de vazão remanescente (ou seja, descontando o que a usina utilizará). O valor depois foi alterado para 17,9 metros cúbicos por segundo e, agora, para 21.
Acontece que, para funcionar, a hidrelétrica precisa de pelo menos 17 metros cúbicos por segundo. E a vazão mínima mensal do rio Aripuanã é 18 metros cúbicos por segundo. Não bastasse isso, uma portaria da Agência Nacional das Águas estabelece que as pequenas centrais hidrelétricas já instaladas no salto dos Dardanelos devem ter garantidos 24,3 metros cúbicos por segundo.
Por essa matemática, a hidrelétrica só poderia funcionar quando o rio tivesse mais de 60 metros cúbicos por segundo de vazão. "Pelos nossos cálculos, a usina ficaria três meses por ano parada por falta d'água -isso se a vazão remanescente fosse 12 metros cúbicos por segundo", diz Dorival Gonçalves Júnior, professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso e um dos especialistas que analisaram o EIA-Rima a pedido do MP. "Se você viabiliza os 21 metros cúbicos, inviabiliza a usina do ponto de vista energético, e vice-versa."
Segundo Gonçalves Júnior, a inconstância do rio faria com que a chamada energia firme da usina -ou seja, a potência com a qual se pode contar- caísse para 80 megawatts, o que a Eletronorte nega (leia texto na pág. A27). A potência instalada (nominal) do empreendimento é 261 megawatts. "Nacionalmente, para uma usina ser economicamente viável, essa relação é acima de 50%", diz o engenheiro. "Isso vira tarifa depois."


Com Juliana Arini, colaboração para a Folha

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