São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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Os novos retirantes

Com o planeta esquentando e com o aumento da devastação, aves do cerrado irão para o Sudeste, diz pesquisa

RICARDO MIOTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O aquecimento global vai fazer os pássaros do cerrado fugirem para o Sudeste, em busca das temperaturas com as quais estavam acostumados. Mas não sobraram muitas áreas intocadas no novo destino. No lugar, há plantações imensas, cidades. Como nem os canaviais de Ribeirão Preto (SP) nem os prédios paulistanos são boas opções para os bichos, eles correrão para um lugar que não está preparado para recebê-los.
"O Sudeste é terrível para a sobrevivência desses bichos. Eles vão ter que atravessar centenas de quilômetros de plantações. Muitos não vão conseguir", diz Miguel Marini, da Universidade de Brasília.
Mudanças climáticas, mesmo sem influência humana, ocorrem ao longo do tempo. Migrações de espécies, por isso, são naturais. Com o passar das gerações, elas acabam se adaptando à nova realidade.
"Mas agora há uma coisa atípica no meio, que é o homem", diz Marini, que liderou o estudo. "Vamos ter desequilíbrios, talvez uma reorganização completa dos animais. Pode demorar décadas ou séculos para tudo se estabilizar novamente. Porque agora os ambientes estão todos alterados."
Muitas espécies, portanto, desaparecerão no caminho.
O trabalho usou os modelos do painel do clima da ONU, o IPCC, e foi publicado na revista "Conservation Biology".
Os cientistas utilizaram dados referentes à distribuição dos animais pelo cerrado. Redesenharam, então, essa distribuição com base nas mudanças climáticas esperadas. E descobriram para onde os animais irão para ficar em regiões com as temperaturas máximas com as quais estão habituados.
O estudo foi feito com aves como o jacu, mas suas conclusões valem para outras espécies, dizem seus autores.

Vida ruim lá no sertão
Não que a vida no cerrado fosse estar muito boa para os animais sem o aquecimento global. A soja e a pecuária são conhecidos vilões da vegetação.
"A situação do cerrado é crítica [pelo menos 40% de sua área já foi alterada]. É a grande zona de produção agrícola do país. A ocupação foi feita nos anos 1960 e 1970 sem nenhum tipo de planejamento. Aí temos degradação do solo e a perda de recursos hídricos", diz o especialista em aves José Maria Cardoso, vice-presidente para a América do Sul da ONG Conservação Internacional (CI). "E a fase atual da expansão agrícola segue o mesmo princípio."
Mas e daí que uma espécie ou outra desapareça?
"As espécies são indicadoras da qualidade de um ambiente. Quando uma espécie some, é um sinal de que o ambiente todo está bem mal. A própria produção agrícola pode sofrer", diz o vice-presidente da CI.
O cerrado é importante porque a cabeceira da maior parte dos rios brasileiros está lá. "Além disso, há a biodiversidade. Olhamos o cerrado e achamos que ele é pobre de espécies, mas é muito rico", diz Cardoso. "Estudos mostram que a diversidade genética de lá é maior do que a da Amazônia. Então, o grande laboratório para produzir remédios a partir de plantas é o cerrado."
Isso porque na Amazônia existem muitas espécies do mesmo gênero. No cerrado, são poucas espécies, mas distribuídas em uma grande quantidade de famílias. A genética da flora é mais heterogênea.
"O planalto onde está o cerrado é relativamente antigo. Ali está concentrada a história evolutiva de milhões de anos. E nós a estamos perdendo. É um patrimônio sem preço. É como se a gente estivesse destruindo nossos monumentos, nossos livros. E estamos fazendo isso muito rápido", diz Cardoso.

Corra, que o calor vem aí
Não é só no Brasil, claro, que os bichos fugirão dos seus habitats por causa do aquecimento.
"A conclusão de que os organismos vão se deslocar para os polos ou para as montanhas é mundial", diz Marini.
A vegetação também deve se deslocar. "A previsão para ela é parecida com a da fauna. Mas, no caso do cerrado, você precisa ter condições para a vegetação se deslocar. Não adianta chegar num local onde só tem plantação. A semente no meio da soja não vai crescer", diz.
Mas esses modelos não são perfeitos. "Não é só o clima que determina a distribuição do cerrado. Tem relevo, solo. Não significa que, mudando o clima, o cerrado vai se deslocar. Como essas modelagens só usam o clima, o nível de incerteza é muito alto", diz Cardoso.
"Quando dizem que o cerrado vai se expandir para a Amazônia, por exemplo, é pura balela. Não tem como. O cerrado é uma vegetação específica, adaptada ao local onde está."
Nesse caso, a situação é pior ainda. Que as mudanças climáticas afetarão a vegetação e os animais é certo. A devastação, mais ainda. Mas, se os modelos se mostrarem errados, será necessário lidar com a mudança sem saber bem o que vai acontecer -apenas que o ambiente, no final, vai sair perdendo.


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