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Os novos retirantes
Com o planeta esquentando e com o aumento da devastação, aves do cerrado irão para o Sudeste, diz pesquisa
RICARDO MIOTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O aquecimento global vai fazer os
pássaros do cerrado fugirem para o
Sudeste, em busca
das temperaturas com as quais
estavam acostumados. Mas
não sobraram muitas áreas intocadas no novo destino. No lugar, há plantações imensas, cidades. Como nem os canaviais
de Ribeirão Preto (SP) nem os
prédios paulistanos são boas
opções para os bichos, eles correrão para um lugar que não está preparado para recebê-los.
"O Sudeste é terrível para a
sobrevivência desses bichos.
Eles vão ter que atravessar centenas de quilômetros de plantações. Muitos não vão conseguir", diz Miguel Marini, da
Universidade de Brasília.
Mudanças climáticas, mesmo sem influência humana,
ocorrem ao longo do tempo.
Migrações de espécies, por isso, são naturais. Com o passar
das gerações, elas acabam se
adaptando à nova realidade.
"Mas agora há uma coisa atípica no meio, que é o homem",
diz Marini, que liderou o estudo. "Vamos ter desequilíbrios,
talvez uma reorganização completa dos animais. Pode demorar décadas ou séculos para tudo se estabilizar novamente.
Porque agora os ambientes estão todos alterados."
Muitas espécies, portanto,
desaparecerão no caminho.
O trabalho usou os modelos
do painel do clima da ONU, o
IPCC, e foi publicado na revista
"Conservation Biology".
Os cientistas utilizaram dados referentes à distribuição
dos animais pelo cerrado. Redesenharam, então, essa distribuição com base nas mudanças
climáticas esperadas. E descobriram para onde os animais
irão para ficar em regiões com
as temperaturas máximas com
as quais estão habituados.
O estudo foi feito com aves
como o jacu, mas suas conclusões valem para outras espécies, dizem seus autores.
Vida ruim lá no sertão
Não que a vida no cerrado
fosse estar muito boa para os
animais sem o aquecimento
global. A soja e a pecuária são
conhecidos vilões da vegetação.
"A situação do cerrado é crítica [pelo menos 40% de sua área
já foi alterada]. É a grande zona
de produção agrícola do país. A
ocupação foi feita nos anos
1960 e 1970 sem nenhum tipo
de planejamento. Aí temos degradação do solo e a perda de
recursos hídricos", diz o especialista em aves José Maria
Cardoso, vice-presidente para
a América do Sul da ONG Conservação Internacional (CI). "E
a fase atual da expansão agrícola segue o mesmo princípio."
Mas e daí que uma espécie ou
outra desapareça?
"As espécies são indicadoras
da qualidade de um ambiente.
Quando uma espécie some, é
um sinal de que o ambiente todo está bem mal. A própria produção agrícola pode sofrer", diz
o vice-presidente da CI.
O cerrado é importante porque a cabeceira da maior parte
dos rios brasileiros está lá.
"Além disso, há a biodiversidade. Olhamos o cerrado e achamos que ele é pobre de espécies, mas é muito rico", diz Cardoso. "Estudos mostram que a
diversidade genética de lá é
maior do que a da Amazônia.
Então, o grande laboratório para produzir remédios a partir
de plantas é o cerrado."
Isso porque na Amazônia
existem muitas espécies do
mesmo gênero. No cerrado, são
poucas espécies, mas distribuídas em uma grande quantidade
de famílias. A genética da flora
é mais heterogênea.
"O planalto onde está o cerrado é relativamente antigo. Ali
está concentrada a história
evolutiva de milhões de anos. E
nós a estamos perdendo. É um
patrimônio sem preço. É como
se a gente estivesse destruindo
nossos monumentos, nossos livros. E estamos fazendo isso
muito rápido", diz Cardoso.
Corra, que o calor vem aí
Não é só no Brasil, claro, que
os bichos fugirão dos seus habitats por causa do aquecimento.
"A conclusão de que os organismos vão se deslocar para os
polos ou para as montanhas é
mundial", diz Marini.
A vegetação também deve se
deslocar. "A previsão para ela é
parecida com a da fauna. Mas,
no caso do cerrado, você precisa ter condições para a vegetação se deslocar. Não adianta
chegar num local onde só tem
plantação. A semente no meio
da soja não vai crescer", diz.
Mas esses modelos não são
perfeitos. "Não é só o clima que
determina a distribuição do
cerrado. Tem relevo, solo. Não
significa que, mudando o clima,
o cerrado vai se deslocar. Como
essas modelagens só usam o clima, o nível de incerteza é muito
alto", diz Cardoso.
"Quando dizem que o cerrado vai se expandir para a Amazônia, por exemplo, é pura balela. Não tem como. O cerrado é
uma vegetação específica,
adaptada ao local onde está."
Nesse caso, a situação é pior
ainda. Que as mudanças climáticas afetarão a vegetação e os
animais é certo. A devastação,
mais ainda. Mas, se os modelos
se mostrarem errados, será necessário lidar com a mudança
sem saber bem o que vai acontecer -apenas que o ambiente,
no final, vai sair perdendo.
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