São Paulo, quinta-feira, 09 de novembro de 2000

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ANTROPOLOGIA
Índios tinham sistema sofisticado para pesca durante o século 17
Amazônia tinha fazenda de peixes

CLAUDIO ANGELO
DA REPORTAGEM LOCAL

Está cada vez mais difícil sustentar a tese de que a pobreza ambiental da Amazônia impediu o desenvolvimento de grandes sociedades indígenas na região no passado. Um estudo publicado hoje na revista "Nature" mostra que culturas do norte da Bolívia driblaram o ambiente, transformando a savana onde viviam numa piscicultura gigante.
Estudando aterros pré-colombianos na região de Baures, perto da fronteira com o Brasil, o arqueólogo norte-americano Clark Erickson, da Universidade da Pensilvânia, descobriu estar diante de um sistema de canais e tanques de 500 km2 de extensão (um pouco maior que a baía de Guanabara), provavelmente usado pelos índios para criar peixes.
A piscicultura, afirma o pesquisador, foi a maneira encontrada pelos antigos bolivianos para suprir a carência de proteínas num lugar onde a caça rareia e onde o solo é ruim para o plantio.
"Em vez de simplesmente se adaptar a um dado ambiente externo, os povos amazônicos construíram o ambiente que desejaram", disse Erickson à Folha.
A região de Baures, perto da fronteira com o Brasil, é uma zona de campos naturais que passa metade do ano alagada. Para aproveitar os peixes trazidos pelas cheias, os índios baures usaram um truque engenhoso: ergueram mais de 1.500 km de diques em forma de ziguezague, com "comportas" a cada 50 ou 100 metros.
Atrás de cada barreira eram construídos "piscinões" circulares, mais profundos, que acumulavam água nas épocas mais secas.
"Os peixes que entravam ficavam retidos ali e podiam ser capturados facilmente durante o resto do ano", afirma o cientista.
Os tanques acabavam tendo tripla função: além de prover água e peixe, ainda tornavam o solo adequado ao nascimento de palmeiras de frutos comestíveis. Para completar, eram ótimos pontos de caça. "Animais se juntavam ali para beber água", diz Erickson.
Para complementar a dieta, os baures cultivavam mandioca e batata-doce em aterros, sobre os quais também erguiam aldeias.
A identificação dos diques foi feita por analogia com outros tipos de "curral" de peixes usados por índios atuais. "O formato em ziguezague descarta a possibilidade de seu uso para transporte; há várias estradas em linha reta na vizinhança dos diques que cumpriam essa função", diz Erickson.
A única datação feita de material associado aos diques mostra que eles já haviam sido erguidos em meados do século 17, décadas antes da invasão espanhola na região. "Mas não sabemos ainda quando eles começaram a ser construídos, nem por quem."
Tanto as estradas -que conectavam uma aldeia à outra- quanto as barragens evidenciam um alto grau de articulação entre os assentamentos da região.
Erickson disse, no entanto, duvidar de que pudesse ter havido uma articulação política central em Baures. Alguns estudiosos propõem que as sociedades amazônicas pré-colombianas tenham se estruturado sob o que eles chamam de "cacicados", um sistema político entre a tribo e o Estado.


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