São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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Para longe da crise

Divulgação/Nasa
Em Marte, o jipe-robô Sojourner, que em 1997 se tornou o símbolo da estratégia "faster, better, cheaper" criada por Daniel Goldin na Nasa


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

Se a Nasa hoje tem uma filosofia e um estilo de trabalho bem definidos, deve-os a Daniel Goldin. Ele assumiu o comando da agência espacial americana em 1992, com a difícil missão de reabilitar a instituição responsável pela explosão do ônibus espacial Challenger, que matou sete astronautas em 1986, e a colocação em órbita do telescópio espacial multibilionário Hubble, com um espelho defeituoso, em 1990. Para combater a noção corrente de que a agência desperdiçava o dinheiro do contribuinte, ele criou a filosofia "faster, better, cheaper" (mais rápido, melhor, mais barato), que reduziu o custo de cada sonda de bilhões para milhões. A fórmula também custou a perda de sondas importantes, como a Mars Polar Lander e a Mars Climate Orbiter, em 1999.
Apesar das críticas, o engenheiro Goldin está satisfeito com seus dez anos de Nasa. "Nós lançamos 171 coisas para o espaço, e 160 foram bem-sucedidas", diz. "O custo médio de cada nave é um terço do que era antes que eu chegasse lá. Leva 40% menos tempo para fazê-la. E a ciência é de tirar o fôlego. Qual é o problema?"
Além de mostrar habilidade para gerenciar a agência, Goldin mostrou que sabe fazer política. Sobreviveu a duas sucessões presidenciais num cargo cujo ocupante é escolhido pelo presidente. Mesmo assim, Goldin, 61, decidiu que era hora de sair. O momento foi bem escolhido. Hoje, a agência enfrenta outra crise, com os estouros no orçamento da ISS (Estação Espacial Internacional) e a perspectiva de mais cortes em decorrência da guerra contra o terrorismo. Leia na próxima página trechos da entrevista que ele deu por telefone à Folha.


Daniel Goldin, que deixou a direção da Nasa após dez anos, diz que foi bem-sucedida sua estratégia de missões menores e mais baratas, apesar dos desastres com as sondas Mars Polar Lander e Mars Climate Orbiter


Numa saudação ao próximo diretor da Nasa, o sr. disse que esse é "o melhor emprego do mundo". Por que o sr. desistiu do melhor emprego do mundo, após superar duas transições presidenciais?
Dez anos é um longo tempo. Eu servi a três presidentes e tenho o recorde de permanência na direção da Nasa. Estava na hora. Eu tenho filhas e netos que vivem na Califórnia, a 3.000 milhas de distância, e não gasto tempo suficiente com a família. Minha esposa se dedicou a mim e agora é hora de dar a ela uma chance, e... simplesmente era a hora. Eu realizei tudo que pretendia realizar. Com uma exceção: liderar uma expedição a Marte, e isso não vai acontecer tão cedo. E esse não é um emprego de uma vida inteira.

Após todo esse tempo no comando da agência, o sr. acredita que teve a chance de criar e desenvolver uma forma e uma filosofia para a Nasa que os diretores anteriores não tiveram a oportunidade ou a visão para fazer?
Não. O pessoal da Nasa é excelente. As pessoas que vieram antes de mim enfrentaram desafios diferentes, eram pessoas muito, muito boas, e eu gosto de acreditar que, no tempo em que estive lá, eu ajudei o pessoal da Nasa a não ter medo de fracassos, a fazer coisas audaciosas, a abrir a fronteira do espaço.

Sua abordagem "faster, better, cheaper" foi recebida com muitas críticas entre engenheiros e cientistas ao longo dos anos e...
Isso é absurdo. Nós lançamos 171 coisas para o espaço, 160 foram bem-sucedidas. Perdemos 11 coisas, perfazendo um total de 550 milhões de dólares, e lançamos 23,5 bilhões de dólares em coisas para o espaço. É um registro inacreditável de desempenho em escala mundial. E o custo médio de cada nave é um terço do que era antes que eu chegasse lá. Leva 40% menos tempo para fazê-la. E a ciência é de tirar o fôlego. Qual é o problema?

O sr. então considera todas as críticas infundadas?
Veja, sempre haverá pessoas que vão reclamar. Mas me mostre um registro melhor que esse. Dê uma olhada na ciência que a Nasa produziu, com um orçamento que tem 30% menos poder de compra. Melhoramos nossa produtividade 40%. É espetacular.

A exploração espacial funciona com um pé no presente e outro no futuro, ou seja, é preciso planejar com muita antecipação para que tudo continue caminhando. Aparentemente a Nasa está num bom momento agora, com as missões tripuladas à ISS e as sondas para Marte e o Sistema Solar exterior, mas o futuro é tão promissor quanto o presente? O próximo diretor enfrentará dificuldades com o cancelamento do projeto X-33, o sucessor do ônibus espacial, e as restrições no orçamento da ISS?
Não. A Nasa é uma grande organização. As pessoas vivem vitoriosamente ao passar pela Nasa. A Nasa fez grandes coisas porque não temos medo de fracasso, nosso fracassos são públicos, mas são poucos. Sempre houve problemas, todo ano tivemos problemas que tivemos de resolver, o pessoal da Nasa passou por esses problemas, o próximo diretor terá de lidar com eles. Mas o programa espacial é inspirador. É inspirador porque nós aceitamos riscos.

Mas, falando de problemas específicos, como podem ser mantidas missões tripuladas se os ônibus espaciais envelhecem a cada ano e não há um projeto substituto?
Os ônibus espaciais gastaram apenas 25% de sua vida útil. Eles ainda têm 75% sobrando. Eles têm 25 a 30 missões cada um e foram projetados para 100. Estarão bem e terão um substituto quando for preciso.

Então por que a Nasa não usa mais o Columbia [o primeiro ônibus espacial, lançado em 1981]?
Porque é um pouco mais pesado e não é necessário para a estação espacial. Ele está perfeitamente operacional, mas tem 5.000 libras a menos de capacidade de carga do que o resto dos orbitadores e não é necessário para as missões que temos agora.

Mas quanto levaria para desenvolver um projeto complexo como um substituto para o ônibus espacial?
Bem, quando houver algo que seja mais confiável e cujo custo de operação seja menor, vai acontecer.

Então o X-33 podia mesmo ser cancelado sem prejuízos?
Sabe, você começa coisas, e algumas serão bem-sucedidas. O X-33 não falhou por causa de sua tecnologia, era um programa embasado comercialmente, e não havia um mercado comercial lá fora. A companhia que o estava desenvolvendo sentiu que não devia investir seu capital privado. Há um outro programa agora, chamado Space Launch Initiative [Iniciativa de Lançamento Espacial". É um investimento tecnológico de US$ 5 bilhões nos próximos cinco anos. A tecnologia sairá daí e será aplicada para atualizar o ônibus espacial ou criar um novo veículo.

O esforço de guerra vai reduzir o orçamento da Nasa?
Não sei. A prioridade número um é proteger a liberdade e a democracia. E o que for necessário para isso determinará o que vai sai sobrar para fazer outras coisas. Quando a guerra acabar, a Nasa pode pensar em um orçamento maior. Mas agora a guerra é questão mais prioritária a enfrentar.

A militarização do espaço proposta pelos EUA, com a criação de um escudo de satélites contra mísseis...
Eu gerenciei o programa espacial civil. Gostaria de saber o quão relevante isso é em termos de exploração civil do espaço. O que significa para a Nasa e para o espírito da Nasa, que é o de fazer exploração científica, ter uma militarização do espaço? O programa espacial civil tem como objetivo os usos pacíficos do espaço. Continuará indo adiante. O fato de que o espaço possa ser uma área potencial para o povo americano e povos de outros países se defenderem é uma decisão que o presidente deve fazer. Se for necessário para a defesa da nação e do povo americano e for apoiado por membros do Congresso, e se for discutido na arena internacional, é apropriado fazer. É só o que pretendo dizer.

A China tentará enviar um homem ao espaço em 2005 e depois colocar um homem na Lua. Como o sr. vê esse esforço de desenvolvimento de tecnologia espacial?
A China tem todo o direito de fazer o que quiser no espaço, e, se eles dizem que é uma meta, eu não vejo nada de errado com isso. É um país autônomo. A América foi à Lua por conta própria.

O orçamento da administração Bush para a ISS reduziu o dinheiro para o projeto. Isso pode atrapalhar a cooperação entre os países que participam da estação?
O painel Young [comissão que avaliou os custos e estouros de orçamento da ISS] fez várias recomendações bem específicas, e cabe ao novo diretor decidir quais recomendações aceitar e o que fazer.

O único participante em desenvolvimento na ISS é o Brasil. Como o sr. vê a evolução do programa brasileiro?
O Brasil está fazendo um trabalho excelente. Eu tenho acompanhado o programa brasileiro por anos e eu acho que vocês têm grande liderança.

O sr. acredita que o grande passo após a ISS deveria ser uma viagem tripulada a Marte. Mas alguns defendem uma volta à Lua, com a construção de uma base lunar, ou ainda a exploração de asteróides.
Eu não sei sobre construir uma base lunar, mas testar o equipamento todo lá antes de ir para Marte, já que a zona da Lua está a alguns dias de distância e Marte, a anos... Talvez valha checar o equipamento na Lua e ter a certeza de que tudo está funcionando. E talvez haja asteróides passando por perto da Terra que exigiriam muito menos energia para chegar lá. Mas, abertamente, o alvo é Marte.

A Nasa acabou cortando o dinheiro da Seti [Busca por Inteligência Extraterrestre, na sigla em inglês]. Por quê?
Seti é uma porção muito, muito pequena da busca por vida. Estamos procurando por vida unicelular ou maior, baseada em carbono ou não. Procurar por inteligência extraterrestre é uma visão estreita, confinada. É perder a possibilidade de entender a origem, a evolução e o destino da vida no Universo. Astrobiologia é muito melhor.


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